domingo, 28 de novembro de 2010

EU AMO UMA PESSOA

Eu amo uma pessoa. Esse amor é meu, não da pessoa. Essa pessoa é uma coisa que produz sombra, tem massa e por algum motivo me atrai. Mas esse amor e minha forma de amar serão sempre os mesmos. Muda o alvo. É como se meu amor fosse meu braço e segurasse diferentes coisas. O braço é sempre o meu braço, mas às vezes seguro uma lata de refrigerante, às vezes seguro um molho de chaves. Às vezes machuco o braço e por um tempo não posso usá-lo direito. Em outras épocas estou animado e quero fazer exercícios e jogar bola. Uma vez peguei uma leiteira quente e queimei a mão. Então sempre confiro bem as leiteiras antes de pega-las. Mas o mesmo braço que segurava um volume da enciclopédia quando tinha dez anos e achava meio pesado, hoje em dia não só está mais exercitado como acostumado e um dia achará pesado demais esse mesmo livro, pela idade avançada dos meus músculos. O meu amor é meu e ele envelhece comigo, mas é sempre meu como meu DNA. Aliás, se tem DNA, não muda. Não tente mudar uma enciclopédia, ou uma leiteira quente. Se uma enciclopédia mudar ela não será mais uma enciclopédia e uma leiteira fria não é a leiteira quente, é a leiteira fria. Boa sorte.

sábado, 20 de novembro de 2010

INTERROGATÓRIO

- Antes de vir para a instituição, ele era um campeão de alguma coisa. Desculpe-me pela ignorância, mas nunca estive por dentro do mundo olímpico. Aos vinte e cinco anos, no auge da fama, abandonou as competições e veio lecionar no curso, e era apenas isso que sabíamos dele. Bem, pelo menos foi o que me disseram quando entrei aqui há dois anos. Provavelmente não era a única pessoa que o achava estranho, apesar de ser simpático e me parecer honesto, trabalhador. Os alunos gostavam muito dele. Tinha cara de quem preferia guardar as coisas para si mesmo. Agora, sinceramente não sei o que pensar!

Terminado o interrogatório, a pessoa levanta-se, caminha aliviada para fora da sala de depoimento e, com passos decididos, vai até seu carro. Dirige até um pequeno apartamento no centro. Chegando ao andar desejado, é atendida por uma senhora de idade que pergunta com ansiedade, beirando o pânico:

- Fez? Você fez a sua parte?

A pessoa há pouco interrogada saca uma arma com silenciador, descarrega na senhora e responde limpando o queixo: “Fiz, agora tente fazer a sua...”.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O RESUMO DA ÓPERA

E ele se arrastou até as cadeiras e se sentou. Não queria mais beber ate cair, não queria mais comer até abrir o botão da calça e nem queria mais beijar o mundo inteiro. Ele nem sabia o que queria. Ou sabia, mas não sabia como. Então olhou pro lado e achou uma mocinha diferente. Era igual sem ser igual e diferente sem ser banal. Ela tinha olhos vivos e um sorriso grande. Mas ela não tinha olhos alucinados e nem um sorriso desesperado. E ela olhou pra ele e eles se deram bem e se acharam divertidos e eles brincaram e daí um gostou do outro. Mas o mesmo ser que criou o número 142.857 criou as baratas com asas. E foi ele mesmo que deixou criarem a penicilina e também deixou criarem o nazismo e a invasão espanhola na America do sul. E por isso, e só por isso, o mocinho e a mocinha arrastaram as suas bagagens e elas eram muito pesadas e dentro dos sacos tinham coisas pontudas e velhas e o saco acabou rasgando e se espalhou por aí. E daí quem tinha mais medo (baratas com asas nazistas) abandonou o barco, deixando o lado mais curioso e feliz (penicilina de doce de café) com o coraçãozinho apertado igual a nó de cadarço molhado. E quem está certo por querer outra pessoa? E quem está errado por não querer que lhe queira? Hoje em dia cada um vive na sua com mais coisas estranhas nas suas bagagens pesadas. Algumas coisas caíram e eles viram que não serviam pra nada. Mas sabe como são essas coisas que caem por aí... Às vezes elas voltam disfarçadas. E não é que elas são boas mesmo nisso? Boas de uma forma cruel como as baratas com asas e cruéis de uma forma boa como os doces de café.

sábado, 6 de novembro de 2010

NO DIA DO MEU CASAMENTO

Ao entrar no carro que me levaria à igreja no dia do meu casamento, pude ver um cachorro urinando na porta da minha casa e ainda pude ouvi-lo uivar ao longe. Isso me lembrou que na noite passada uma coruja pousara sobre a casa do meu vizinho à meia-noite e sua sombra tirava meu sono que já é leve. A cerimônia seguiu tranqüila, apesar dos cães latindo ali perto, nada demais. Na festa do casamento derramei o sal sobre a mesa sem querer e um gato preto cruzou o salão miando consecutivamente, infelizmente ninguém o pegou no colo, pois estavam preocupados com alguns bombos que invadiram a festa, provavelmente fugindo de um pombal. Minha (agora) esposa ao retocar a maquiagem para as fotos acabou quebrando o espelho, pois assustou ao ver uma rã no jardim da casa onde estávamos celebrando naquela sexta-feira, 13. No entanto, nossa vida de casados foi tranqüila, alegre e feliz. Claro, nem sempre se pode ser feliz todos os momentos, mas foi tudo bem tranqüilo.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

CONTANDO DIAS CONTADOS

Era uma tardezinha de primavera. A menina sorridente não sorria mesmo, de forma alguma. Quais seriam os motivos que transformaram seus problemas – minúsculos, comparados ao Universo - em lágrimas tão gigantes assim? Mesmo tristonha ela parecia feliz. Ela era muito feliz mesmo. Se não era, parecia. Então, antes de dormir (com os olhinhos inchados, coitada!) ela desejou muito que não houvesse dia seguinte. Mas desejou e desejou. E então desejou de novo. E quem pode dizer se um pouco antes de pegar no sono não desejou mais uma vez? Pode ser que tenha até sonhado com isso e falado... Mas se alguma menina sozinha fala dormindo num quarto no meio da noite, será que alguém ouve?
O fato é que no outro dia ela acordou, vestiu-se, comeu um bolo e, ainda mais uma vez antes de ir pra escola, coçou a idéia na cabeça - queria que hoje não existisse...
O tempo passou. Ela cresceu.
Se ela casou e teve filhos, ninguém sabe. Se foi feliz a maior parte do tempo, também ninguém sabe, mas ninguém poderia ser infeliz tendo sido tão alegre um dia.
Mas o tempo passa para todos e certamente antes de morrer se esqueceu do que um dia desejara tanto.
Ela morreu, e todos de sua época também. E das épocas futuras também, e assim por diante. Até que tudo morreu (ou se transformou, como diria Lavoisier).
E no dia do juízo final, Deus notou que faltava um dia.