quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

ANNA & OTTO

Meu nome é Anna Bonfim. Sou, e sempre fui - desde pequena - uma estudiosa, pessoa das artes, sempre preferi os livros, o teatro, o cinema, a música. Durante a vida toda tive saúde no limiar. Sempre saudável, porém muitos cuidados eram requeridos.

Ele, Otto Faustino, sempre preferiu outras coisas - no meu ponto de vista, erradas. Nunca se fixou a nada, nem a ninguém e nem a lugar nenhum; nunca teve nenhum cuidado, uma pessoa entregue a tudo que pudesse fazer mal - de um simples bacon às piores drogas. Às piores atitudes.

O meu problema com ele, tirando minha opinião sobre pessoas que matam pessoas, vem do fato de sermos a mesma pessoa, ou sermos a mesma coisa.

Não pensem que o que se segue é mais uma história de Jeckyl e Hide - apesar de a comparação ser pertinente. O caso que aqui apresento é semelhante, porém de muito maior gravidade, e isso eu lhes garanto.

No caso da famosa história, o médico criou uma poção que transformava seu corpo, índole e maneira de ver o mundo. Com o tempo, a poção deixou de ser necessária e o lado monstro aparecia quando queria. Algo parecido com o Hulk e mais uma dúzia de personagens. O bom, se é que se pode dizer assim, é que as personalidades escondidas existiam em momentos diferentes, como um Super Homem e Clark Kent ao avesso.

Logo, era fácil acabar com o mal (se o lado ‘monstro’ não fosse do agrado da personalidade principal): eliminando um dos dois, ambos desapareceriam. Os fatos relatados nas histórias eram como um castigo ou um prêmio, como uma moral a ser aprendida. “Nunca tente ser o que você não é”, ou coisa que o valha. No meu caso a coisa complica.

Nós somos a mesma pessoa e vivemos ao mesmo tempo. Não há divisória entre Anna e Otto. Bem, na verdade há uma diferença: ele só é eu quando durmo, e eu sou ele quando ele dorme. O problema é que não habitamos a mesma realidade. Somos contemporâneos, mas vivemos em realidades paralelas. Não fizemos nada para que isso acontecesse. Simplesmente ocorreu. É fácil de entender quando acontece com você. Vamos explicar detalhadamente.

Até cinco anos atrás o mundo era um e todos os fatos ocorriam normalmente, como acontecem para todos nós. Por essa data, quando ia dormir, ao invés de dormir, acordava Otto Faustino. Ou seja, era como se ele tivesse sonhado que era eu.

Toda vez que ele sonha que sou eu, na verdade sou eu mesma. E toda vez que eu sonho ser ele, sou ele mesmo.

Bom, então fica fácil saber onde está o problema - é só eu ir a um médico da cabeça, me internar, e tudo resolvido. Ledo engano, típico de quem - graças a Deus e obviamente - não vive o que vivo.

Nem por um segundo isso me passou pela cabeça, pois quando ele acorda, tenho certeza de que Anna Bonfim é um sonho idiota.

A realidade para ele é a seguinte: até cinco anos atrás o mundo era um e todos os fatos ocorriam normalmente, como acontecem para todos nós. Por essa data, quando ia dormir, ao invés de dormir, acordava Anna Bonfim. Entenderam o drama?

O meu mundo, de cinco anos pra cá, é totalmente diferente do mundo dele. Mas qual é o real?

Impossível dizer, pois dependendo da pessoa que sou, esse é o mundo real, e tanto eu quanto ele não estamos dispostos a abrir mão da própria realidade, e nem que tivéssemos essa intenção, nunca - assim como qualquer ser humano - conseguiríamos. Como se muda um mundo inteiro? Como se apaga um passado, sendo que ele não é um passado - é a realidade dura que a cada milésimo de existência vem cobrar de você?

Já tentei ficar acordada, mas minha saúde, que como já disse antes, estava no limite, começou a despencar, e a cada dia que passa penso o quanto mais vou agüentar. No início pensei que o faria mudar, mas não... Com o tempo, piorou.

Ele não tem interesse em ser uma boa pessoa, pois nem sabe que é uma má pessoa. O que mudou foi que começou a dormir um pouquinho mais, mas quando comecei a me cansar e a ficar fraca, voltou ao normal.

Já pensamos ambos em cometer suicídio. Mas dizem que o sono é parecido com a morte. Como seria se eu morresse... Seria ele pra sempre? E se ele morresse... Seria eu pra sempre?

Eu gosto da minha vida, dos meus parentes, meus amigos, meus afazeres, e ele também gosta dos dele. Mas Faustino me odeia, assim como eu o odeio. Já tentei ir até a casa dele, mas o local onde mora não existe em minha realidade e posso garantir que o local onde vivo não existe na realidade dele.

Agora já tomei dois tipos de remédios pra ficar acordada, estou me acabando nisso, e minha saúde está piorando. Mas preciso me cuidar, pois se morrer corro o perigo de ser um maluco assassino pra sempre.

Mais cedo ou mais tarde ele vai acordar e partir pra sua vida podre, que tanto adora. Já cheguei a desejar a morte de Otto, mas como desejar a morte de alguém tão próximo, de alguém que é você, de alguém que tem tanto direito e vontade de continuar quanto você e eu?

Minha última esperança é que ele mude, ou que eu mude. Mas, meus caros, quem é que muda nesse mundo?

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

AMNÉSIA

Dez anos antes ele fora encontrado nos escombros de um incêndio. Acharam que havia sobrevivido por não estar dentro do prédio, mas sim por perto, na hora em que ruiu. Completamente sem memória... E assim, com a mente em branco, ele reaprendeu a viver. Foi o mais longe possível e agora gerenciava uma floricultura. Após um tempo de trabalho tentando descobrir quem era, ou melhor, quem fora, esse sujeitinho simples e tranqüilo resolveu que não importava mais. Sua vida seguia em frente, tendo ele sido correto ou torto. Sentia às vezes que deveria procurar se informar sobre si, mas passara tanto tempo fazendo-o que pegara um pouco de trauma do assunto. E tem mais: sua vida era boa do jeito que estava. Tinha um emprego razoável, uma namorada a quem amava, e as flores o deixavam tranqüilo. Muitos diziam que ele era um gênio. Conseguia misturar diferentes tipos de plantas e criar as mais belas. Obviamente nunca ninguém conseguiu concluir como aprendera aquilo.
Agora ele caminha pela rua e tem a impressão de que será abordado por ladrões. Ele apressa o passo e entra num prédio, diz boa noite pro porteiro e segue em frente. Mas esses caras não têm noção, seguem-no assim na “caruda”, mesmo? Sobe pelas escadas e ainda ouve esses passos - como de cachorro andando na madeira encerada. Os andares vão passando e o esforço é tremendo - já passa do décimo andar, em puro desespero... Algo como uma luz começa acender no canto superior direito de seu olho direito. Dentro dessa luz, como pétalas numa flor e no centro, como se tivesse uma cena acontecendo. Na cena era ele... Mais jovem, mais forte... Usando uma roupa engraçada. Algo agarra seu tornozelo: era uma mão esverdeada com manchas. Uma mão velha (ou sapos). Ele vira-se assustado; o chapéu da criatura cai, revelando uma cara - que não era bem uma cara, mas ele sabia que era equivalente a uma; sabia porque já soube antes, mesmo com as folhas e tudo. Se ele soube antes, saberia de novo; nunca se sentira tão autoconfiante. Com movimentos que achou ser humanamente impossível e uma caneta que estava no bolso da sua camisa, ele matou (agora que prestava atenção nos cadáveres) cinco criaturas. Sentia-se eufórico, feliz, realizado. Quando havia descido alguns lances de escada, um homem barbado:
- É bom tê-lo de volta, senhor.
- É sempre bom fazer o que se gosta!
Nosso florista abre um zíper no ar e entra.
- Nos vemos mais tarde.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Memória e conclusão I

Uma vez um professor na escola me disse que, mais ou menos, de oito em oito anos todos os nossos ossos eram renovados por completo.
Fui ver essa informação e descobri que não são apenas os ossos.
É a pele, os órgãos, o sangue, pelos etc.
Então no período de mais ou menos oito anos, não sobra nada do que eu era oito anos antes.
Eu já fui mais ou menos quatro pessoas diferentes.
Quando olho para fotos (apesar de saber que sou eu e mais ou menos lembrar daquilo tudo), não sou mais eu em nenhum aspecto.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

SENTIMENTO

Após o incidente, tudo mudara. E era preciso expandir o que sentia. Uma válvula de escape de um lugar desconhecido.
Quando criança, era especial. Do berço até os sete anos de idade não pronunciou uma única palavra. Nem um gugu, nem um dadá. Preocupou muito seus pais que, por mais esforçados que fossem, continuavam sendo humanos. Era como um anjinho, com seus grandes olhos negros. Antena parabólica. Esponja.
Dos oito aos catorze as coisas mudaram. Com a fala veio também a revolta e os sintomas mais óbvios, apesar de não notados, de seu poder. Certa vez seus pais estavam brigando há semanas, sem parar. Com um murro na mesa fez a casa estremecer e todos no mundo se calaram por um minuto. Apesar da energia do ato, a mesa continuou intacta. As brigas entre os pais agora eram direcionadas à própria cria.
Dos quinze aos vinte e um, um tipo de desdém tomou conta, junto a um sentimento de marginalidade. Após juntar muitas coisas não ditas e não feitas, em uma festa chique, de vários talheres e copos, brotou-lhe um grito da garganta com tamanha violência que todos os vidros do local se quebraram, a luz acabou e por semanas todos os presentes - sem ligar o ato ao efeito ou à pessoa - sentiram um enorme vazio no peito, e um silêncio desalentador pairou.
Agora, já com a idade mais avançada, talvez chegando nos vinte e oito, nessa situação difícil de recuperação, notou que o que realmente importava era esse novo sentimento que forçadamente descobrira, um sentimento nostálgico ao contrário, algo de uma pré-infância.
Anterior a isso.
No trabalho, abriu suas mãos em direção aos colegas e eles, olhando com atenção, sentiram-se compreendidos de forma aconchegante.
No trânsito, saiu do carro, ergueu os braços aos céus e assim todos pararam de buzinar, desabotoaram-se e, olhando-se entre si, levantaram as sobrancelhas, querendo achar mais paciência.
Ao chegar em casa, abraçou seus familiares de uma forma que todos entenderam o que se passava e retribuíram ao mundo. Assim, como os colegas de trabalho e as pessoas no trânsito, sentiram toda a paz, silêncio, boa vontade e necessidade de se espreguiçar.
Dirigiu-se ao banheiro, olhou-se no espelho, piscou para si os enormes olhos negros, agora mais negros ainda, e virou luz.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

NECROTÉRIO

Um dia eu estava no necrotério. Temos esse sistema de proteção ao orgulho e mesmo se um morto levanta na sua frente, hesitamos em assustar e fazer papel de bobo. De qualquer forma, depois dos segundos de hesitação, a lógica tomou conta. Então com calma, o morto olhou pra mim. Ele disse que estava morto, que eu poderia conferir todos os sinais e caso alguém já tivesse falado com um morto, saberia que é bem diferente e não da pra se fingir que se está morto.
- Não sei também o que aconteceu e nem porque, mas deixe de curiosidades. Deixe-me falar, não acredito que vá durar muito esse meu retorno, então ouça minhas conclusões e se puder tirar algo de bom disso, tire. Nada que direi é novidade e o que acontece depois da morte não interessa pra você agora, então, lembre-se... Todas as coisas são assim, elas são o fato e o cheiro do fato. Ficar triste não adianta não resolve, portanto, fique atento e tente descobrir se o que sente é tristeza ou o cheiro da tristeza, porque se for o cheio é só tomar banho que passa. Assim como a alegria, com a diferença de que alegria é gostoso e tristeza não. Mas se você gostar da tristeza... Fique triste! Reclame se tiver que reclamar e não se sinta obrigado a ficar feliz também, não é porque está vivo que você tem obrigação de achar tudo bom! Está cheio de coisas ruins por aqui, não se deixe levar por algo que te incomoda, mesmo se todos disserem o oposto, deveríamos sempre fazer o que nos apetece... Seja justo e elogie o que achar que mereça e, por favor, tente não atrapalhar os outros, todos já têm tantos problemas... No mais, a vida é vazia e sem sentido para os que estão vivos, vendo de onde estou me parece bem óbvio, porém, quando estava morto algo parecia fazer mais sentido, mas você pode imaginar como é a memória de um morto.
Então ele se deitou novamente olhando pro teto e olhou pra mim movendo os olhos, arqueou as sobrancelhas e voltou ao silêncio. Aproximei-me dele lentamente, ele já estava calado como deve estar até hoje. Cobri o morto e saí da sala. A cada dia, seguindo a lógica, aproximo-me mais e mais de onde ele se encontrava na época e parece-me que suas conclusões faziam muito sentido.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

CHÁ

- Talvez esta história não lhe agrade, mas foi algo que me ocorreu agora quando tomava o chá.
- Talvez o cheiro o tenha feito lembrar.
- É possível. No trem em que estava serviam um chá delicioso. Diferente deste, claro. Mas algo me fez lembrar...
- Deixe de rodeios e conte logo a história!
- Está bem! Estava tomando o trem que vai daqui para São Paulo, quando em meio a toda aquela confusão dos passageiros, apitos, senhoras gordas e baixinhas, homens engravatados com maletas executivas, deu-se aqui neste lugar uma cena que sobressaltou minha visão, assim como uma bela dose. Era um casal. Um casal lindo. Ela, com belíssimos traços - cabelos castanhos, olhos escuros, corpo delicado. Ele, um rapaz deveras bem apessoado, cabelos igualmente escuros. Conversavam na plataforma. Eu via algo de especial neles - havia algo de melancólico... Pausa para mais um gole de chá!
- Sim, e então?
- Então, com o passar dos... Minutos?... Segundos? Não sei bem, sabe, foi algo diferente; começaram a ficar com as feições enérgicas, com a fala alterada. Então percebi que brigavam, provavelmente por um motivo tolo - afinal, eram apenas jovens... Nova pausa para acrescentar um gole no chá!
- E então, acabou?
- Não, a cena foi tão marcante que, mesmo depois do trem partir, fiquei pensando no porquê da briga. Saindo do idílico apaixonado para o nervosismo em tão pouco espaço de tempo; achei interessante.
- E então?
- E então o quê?
- Já acabou a história?
- Já, oras!
- E...?
Cala-se, olha bem para o companheiro narrador, olha para dentro da xícara de chá, dá com os ombros em tom de descaso. Grande gole no chá quente, que o faz lacrimejar. Dá graças a Deus pela medicina de sua época ser uma porcaria. Logo estaria com os vermes, livre de moribundos nostálgicos apreciadores de Eça de Queiroz.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

TUDO POSSO NAQUELE QUE ME APETECE

Era uma daquelas coisas inéditas que acontecem tantas vezes na vida. Olhar para sua mocinha era o mundo todo desfocado e ele de óculos 3D. Só de conversar com ela brotava uma vontade louca de ter paciência e rever algumas idéias tão antigas como coreto de praça de cidade pequena. Sem falar na aparência. Sabe quando você compra aquele aparelho de som novo que foi desenhado por designers bem pagos pra atingir não qualquer público alvo, mas única e exclusivamente: você? Ou suco de melancia que é uma delicia e não engorda? Ou ir ao dentista e não tem carie nenhuma? Pois é... Era assim que ele se sentia quando encontrava sua amiguinha favorita. E o universo é sem dúvida uma gigantesca empresa que ninguém entende nada e tem tanto procedimento que não sabemos os porquês. Mas como diz aquele livrão de capa escura, foi tudo feito a imagem e semelhança, de onde se conclui que não podemos esperar muito. Tudo que sabemos e conhecemos é menos que a goteira da torneira da casinha do assistente do caseiro júnior. Então é bem pouco provável que qualquer compreensão nossa sirva de alguma coisa além de nós mesmos. Uma coisa que deixava nosso amigo feliz da vida era estar perto da sua amiguinha. Fisicamente ou na memória de um dos dois. E isso já era tão bom demais da conta que se precisasse, até entenderia o conjunto das coisas todas. Inclusive o fato de que tudo tende a passar como soluços e coceiras na sola do pé quando estamos de bota.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

VINI VIDI VICI

Eu sou invencível, portanto, faço o que quero. Não tenho família e por ser imortal, acabei me distanciando de todas as pessoas. Não podem me forçar a nada usando métodos legais, pois a lei não se aplica a mim. Ou melhor, se aplica... Mas quem a fará vigente? Podem tirar minha fortuna e me deixar sem teto e sem comida e certamente não terão me parado ainda. Podem atirar em mim, me queimar, cortar minha cabeça, enfiar uma estaca no meu coração, me enterrar numa pedreira de kriptonita, me fatiar em pedacinhos e mandar cada pedaço pra um canto do mundo. Nunca vão chegar nem perto de conseguirem tais feitos, mas se conseguirem, não vão me matar ou machucar, só vão me atrasar. Mas não me tome por uma pessoa má, quero o bem e é por isso que fico. Faço minhas coisas, sou um livro aberto, não é segredo. Não é minha identidade secreta, eu sou invencível. Podem entrar na minha casa quando estiver dormindo, mas o que possivelmente alguém conseguiria com isso? Por ser eu quem sou, nada me detém e apesar de não ser especialmente forte ou saber lutar qualquer luta, não vou parar até que, se preciso for, fizer o oponente parar. Venho desde sempre e seguirei pra além das previsões. Sou irreverente, irreproduzível, irreparável, invencível, intocável, inquestionável, inquebrantável, inimputável, indescritível, incorruptível, incontestável e indestrutível, mas nunca, nunca impune.

sábado, 4 de dezembro de 2010

ENCONTRO

Bom, a história é a seguinte: todos na grande casa morrem, um por um. Claro que eu, Teotônio, sobrevivo. Ao descobrir que todos estão mortos, encontrei senhor Lázaro no jardim dos fundos. Ele me pediu algo que achei muito estranho na hora e continuo achando até agora. Algo que envolvia o ato de um homem cavando buracos e colocando coisas dentro deles. Sim, meus amigos, enterrei todos os corpos. A única razão para estar naquele encontro era que, na verdade, gostava de escrever e de ser chamado de poeta, mas minha verdadeira profissão, a que pagava o pouco que podia das minhas dívidas, era a de coveiro. E finalmente tive minha utilidade naquela noite. Devo alegrá-los ao contar que tudo que era de Lázaro agora é meu. Era pouco o que não haviam roubado, mas só a casa já me deu muito mais de um milhão, sem contar os móveis sobre os quais achei o documento que alegava que tudo aquilo era por direito meu. O “mordomo” me entregou o papel e sumiu no ar. Era o cartão de um advogado que resolveu o resto e que logo em seguida morreu de câncer - segundo os médicos, devido ao seu nojento hábito de fumar. Pensei em escrever um livro contando minha história, mas, pensando melhor, ninguém ia ler mesmo. Livraria é cemitério de livros, e de cemitérios já tive minha porção...

domingo, 28 de novembro de 2010

EU AMO UMA PESSOA

Eu amo uma pessoa. Esse amor é meu, não da pessoa. Essa pessoa é uma coisa que produz sombra, tem massa e por algum motivo me atrai. Mas esse amor e minha forma de amar serão sempre os mesmos. Muda o alvo. É como se meu amor fosse meu braço e segurasse diferentes coisas. O braço é sempre o meu braço, mas às vezes seguro uma lata de refrigerante, às vezes seguro um molho de chaves. Às vezes machuco o braço e por um tempo não posso usá-lo direito. Em outras épocas estou animado e quero fazer exercícios e jogar bola. Uma vez peguei uma leiteira quente e queimei a mão. Então sempre confiro bem as leiteiras antes de pega-las. Mas o mesmo braço que segurava um volume da enciclopédia quando tinha dez anos e achava meio pesado, hoje em dia não só está mais exercitado como acostumado e um dia achará pesado demais esse mesmo livro, pela idade avançada dos meus músculos. O meu amor é meu e ele envelhece comigo, mas é sempre meu como meu DNA. Aliás, se tem DNA, não muda. Não tente mudar uma enciclopédia, ou uma leiteira quente. Se uma enciclopédia mudar ela não será mais uma enciclopédia e uma leiteira fria não é a leiteira quente, é a leiteira fria. Boa sorte.

sábado, 20 de novembro de 2010

INTERROGATÓRIO

- Antes de vir para a instituição, ele era um campeão de alguma coisa. Desculpe-me pela ignorância, mas nunca estive por dentro do mundo olímpico. Aos vinte e cinco anos, no auge da fama, abandonou as competições e veio lecionar no curso, e era apenas isso que sabíamos dele. Bem, pelo menos foi o que me disseram quando entrei aqui há dois anos. Provavelmente não era a única pessoa que o achava estranho, apesar de ser simpático e me parecer honesto, trabalhador. Os alunos gostavam muito dele. Tinha cara de quem preferia guardar as coisas para si mesmo. Agora, sinceramente não sei o que pensar!

Terminado o interrogatório, a pessoa levanta-se, caminha aliviada para fora da sala de depoimento e, com passos decididos, vai até seu carro. Dirige até um pequeno apartamento no centro. Chegando ao andar desejado, é atendida por uma senhora de idade que pergunta com ansiedade, beirando o pânico:

- Fez? Você fez a sua parte?

A pessoa há pouco interrogada saca uma arma com silenciador, descarrega na senhora e responde limpando o queixo: “Fiz, agora tente fazer a sua...”.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O RESUMO DA ÓPERA

E ele se arrastou até as cadeiras e se sentou. Não queria mais beber ate cair, não queria mais comer até abrir o botão da calça e nem queria mais beijar o mundo inteiro. Ele nem sabia o que queria. Ou sabia, mas não sabia como. Então olhou pro lado e achou uma mocinha diferente. Era igual sem ser igual e diferente sem ser banal. Ela tinha olhos vivos e um sorriso grande. Mas ela não tinha olhos alucinados e nem um sorriso desesperado. E ela olhou pra ele e eles se deram bem e se acharam divertidos e eles brincaram e daí um gostou do outro. Mas o mesmo ser que criou o número 142.857 criou as baratas com asas. E foi ele mesmo que deixou criarem a penicilina e também deixou criarem o nazismo e a invasão espanhola na America do sul. E por isso, e só por isso, o mocinho e a mocinha arrastaram as suas bagagens e elas eram muito pesadas e dentro dos sacos tinham coisas pontudas e velhas e o saco acabou rasgando e se espalhou por aí. E daí quem tinha mais medo (baratas com asas nazistas) abandonou o barco, deixando o lado mais curioso e feliz (penicilina de doce de café) com o coraçãozinho apertado igual a nó de cadarço molhado. E quem está certo por querer outra pessoa? E quem está errado por não querer que lhe queira? Hoje em dia cada um vive na sua com mais coisas estranhas nas suas bagagens pesadas. Algumas coisas caíram e eles viram que não serviam pra nada. Mas sabe como são essas coisas que caem por aí... Às vezes elas voltam disfarçadas. E não é que elas são boas mesmo nisso? Boas de uma forma cruel como as baratas com asas e cruéis de uma forma boa como os doces de café.

sábado, 6 de novembro de 2010

NO DIA DO MEU CASAMENTO

Ao entrar no carro que me levaria à igreja no dia do meu casamento, pude ver um cachorro urinando na porta da minha casa e ainda pude ouvi-lo uivar ao longe. Isso me lembrou que na noite passada uma coruja pousara sobre a casa do meu vizinho à meia-noite e sua sombra tirava meu sono que já é leve. A cerimônia seguiu tranqüila, apesar dos cães latindo ali perto, nada demais. Na festa do casamento derramei o sal sobre a mesa sem querer e um gato preto cruzou o salão miando consecutivamente, infelizmente ninguém o pegou no colo, pois estavam preocupados com alguns bombos que invadiram a festa, provavelmente fugindo de um pombal. Minha (agora) esposa ao retocar a maquiagem para as fotos acabou quebrando o espelho, pois assustou ao ver uma rã no jardim da casa onde estávamos celebrando naquela sexta-feira, 13. No entanto, nossa vida de casados foi tranqüila, alegre e feliz. Claro, nem sempre se pode ser feliz todos os momentos, mas foi tudo bem tranqüilo.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

CONTANDO DIAS CONTADOS

Era uma tardezinha de primavera. A menina sorridente não sorria mesmo, de forma alguma. Quais seriam os motivos que transformaram seus problemas – minúsculos, comparados ao Universo - em lágrimas tão gigantes assim? Mesmo tristonha ela parecia feliz. Ela era muito feliz mesmo. Se não era, parecia. Então, antes de dormir (com os olhinhos inchados, coitada!) ela desejou muito que não houvesse dia seguinte. Mas desejou e desejou. E então desejou de novo. E quem pode dizer se um pouco antes de pegar no sono não desejou mais uma vez? Pode ser que tenha até sonhado com isso e falado... Mas se alguma menina sozinha fala dormindo num quarto no meio da noite, será que alguém ouve?
O fato é que no outro dia ela acordou, vestiu-se, comeu um bolo e, ainda mais uma vez antes de ir pra escola, coçou a idéia na cabeça - queria que hoje não existisse...
O tempo passou. Ela cresceu.
Se ela casou e teve filhos, ninguém sabe. Se foi feliz a maior parte do tempo, também ninguém sabe, mas ninguém poderia ser infeliz tendo sido tão alegre um dia.
Mas o tempo passa para todos e certamente antes de morrer se esqueceu do que um dia desejara tanto.
Ela morreu, e todos de sua época também. E das épocas futuras também, e assim por diante. Até que tudo morreu (ou se transformou, como diria Lavoisier).
E no dia do juízo final, Deus notou que faltava um dia.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

PERTO DELE...

Perto dele, João Gilberto é cantor de ópera. Perto dele, a guarda do Palácio de Buckingham é um bando de palhaços de festa infantil que abusaram do gim. Perto dele, as idéias de Stephen Hawking parecem sonhos de um orangotango durante a siesta no verão. Perto dele, cantores de rap não têm muita convicção e Humphrey Bogart é caloroso e expansivo. Perto dele, jaca é pitanga; tempestade é espirro e sequóia é tradução de efêmero. Perto dele, dragão-de-komodo é Golden Retriver. Perto dele, o âncora do jornal das oito é um soprano com as bolas esmagadas. Perto dele, o Mediterrâneo é poça d’água e Tarcísio Meira é Mazzaropi. Mas nesse exato momento não havia ninguém por perto e ele podia ouvir Wando enquanto coçava o saco comendo tremoço.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

MORAL

José era uma criança feliz, humilde, brincalhona, ajudava bastante sua mãe nos trabalhos domésticos. Um dia, pensando na vida, pela primeira vez refletiu sobre seu futuro. Logo lhe veio à idéia de ser um homem rico, honesto, que pudesse dar de tudo para sua família.

Silva era um homem feliz, humilde, honesto e trabalhador. Desde a primeira vez que pensou como seria sua vida quando adulto decidiu que iria trabalhar duro para dar do bom e do melhor para sua família.

José da Silva era um velho infeliz, honesto e trabalhador. Desde a primeira vez que pensou como seria sua vida adulta, decidiu que iria trabalhar duro para dar tudo de melhor para sua família.

Ah, é?

E daí?

terça-feira, 5 de outubro de 2010

EU SOU UM CARA RAZOAVELMENTE RASO

Não presto pra discussões e nem exposições de idéias. Não gosto e não me interesso por assuntos de gente grande. É um tédio profundo política, ecologia, bolsa de valores e campeonatos. Não quero mais julgar. Tenho minha opinião, prefiro fazer graça. Eu queria casar, ter filhos e trabalhar em paz, mas eu sou eu e eu sei que isso não vai acontecer e se acontecer não será como eu quero. Queria Deus, algo maior, macumba, magia, feitiçaria, uma pessoa sábia, super poderes. No final sou Eu, eu, eu, eu... Você, você, você, você... Ela, ele, eles, elas... Eu, eu, eu, eu, eu... Não é ruim. Não é bom. Quando acabar foi curto. E lá vamos nós.

domingo, 26 de setembro de 2010

- Sim, filho, tu tens que te decidires.
- É tão difícil...
- Mas é preciso.
- Quando me vejo... As muitas decisões que não tomei enquanto estava lá...
- Sentes-te com vontade de voltar?
- Sim... Penso nos que deixei... Principalmente nela...
- Tu a amas muito, não é?
- Mais que tudo...
- E ela?
- Ela...
- Ama-te?
- É melhor amar do que ser amado...
- Será?
- No momento, sim... Mas... O Senhor sabe tudo...
- É provável.
- Então me diga: fico ou vou...?
- Isto seria mais uma decisão que deixarias de tomar.
- Tem razão...
- Então?
- Já me decidi...
- Eu sei. Fizeste o certo.
- Tem certeza...?
- Tanto faz meu filho, tanto faz!!!

sábado, 25 de setembro de 2010

SARMASSOFOBIA

De frente para mim está aquela rua, rua em que pela última vez nos vimos.
Na esquina está a árvore, árvore que, no último dia, ao dobrá-la pela primeira vez, a notei.
Aqui não está o muro branco, diante do qual tiramos retratos juntos. No dia em que estávamos juntos na rua que tem a árvore que olho agora com olhos cheios de saudade antiga, de tempo recente.
... daí olhei pros lados e, sem achar uma boa saída, aluguei uns filmes, e comi uma pizza fora da promoção inteira, sozinho, antes de pegar no sono.