segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

NECROTÉRIO

Um dia eu estava no necrotério. Temos esse sistema de proteção ao orgulho e mesmo se um morto levanta na sua frente, hesitamos em assustar e fazer papel de bobo. De qualquer forma, depois dos segundos de hesitação, a lógica tomou conta. Então com calma, o morto olhou pra mim. Ele disse que estava morto, que eu poderia conferir todos os sinais e caso alguém já tivesse falado com um morto, saberia que é bem diferente e não da pra se fingir que se está morto.
- Não sei também o que aconteceu e nem porque, mas deixe de curiosidades. Deixe-me falar, não acredito que vá durar muito esse meu retorno, então ouça minhas conclusões e se puder tirar algo de bom disso, tire. Nada que direi é novidade e o que acontece depois da morte não interessa pra você agora, então, lembre-se... Todas as coisas são assim, elas são o fato e o cheiro do fato. Ficar triste não adianta não resolve, portanto, fique atento e tente descobrir se o que sente é tristeza ou o cheiro da tristeza, porque se for o cheio é só tomar banho que passa. Assim como a alegria, com a diferença de que alegria é gostoso e tristeza não. Mas se você gostar da tristeza... Fique triste! Reclame se tiver que reclamar e não se sinta obrigado a ficar feliz também, não é porque está vivo que você tem obrigação de achar tudo bom! Está cheio de coisas ruins por aqui, não se deixe levar por algo que te incomoda, mesmo se todos disserem o oposto, deveríamos sempre fazer o que nos apetece... Seja justo e elogie o que achar que mereça e, por favor, tente não atrapalhar os outros, todos já têm tantos problemas... No mais, a vida é vazia e sem sentido para os que estão vivos, vendo de onde estou me parece bem óbvio, porém, quando estava morto algo parecia fazer mais sentido, mas você pode imaginar como é a memória de um morto.
Então ele se deitou novamente olhando pro teto e olhou pra mim movendo os olhos, arqueou as sobrancelhas e voltou ao silêncio. Aproximei-me dele lentamente, ele já estava calado como deve estar até hoje. Cobri o morto e saí da sala. A cada dia, seguindo a lógica, aproximo-me mais e mais de onde ele se encontrava na época e parece-me que suas conclusões faziam muito sentido.

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