quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

AMNÉSIA

Dez anos antes ele fora encontrado nos escombros de um incêndio. Acharam que havia sobrevivido por não estar dentro do prédio, mas sim por perto, na hora em que ruiu. Completamente sem memória... E assim, com a mente em branco, ele reaprendeu a viver. Foi o mais longe possível e agora gerenciava uma floricultura. Após um tempo de trabalho tentando descobrir quem era, ou melhor, quem fora, esse sujeitinho simples e tranqüilo resolveu que não importava mais. Sua vida seguia em frente, tendo ele sido correto ou torto. Sentia às vezes que deveria procurar se informar sobre si, mas passara tanto tempo fazendo-o que pegara um pouco de trauma do assunto. E tem mais: sua vida era boa do jeito que estava. Tinha um emprego razoável, uma namorada a quem amava, e as flores o deixavam tranqüilo. Muitos diziam que ele era um gênio. Conseguia misturar diferentes tipos de plantas e criar as mais belas. Obviamente nunca ninguém conseguiu concluir como aprendera aquilo.
Agora ele caminha pela rua e tem a impressão de que será abordado por ladrões. Ele apressa o passo e entra num prédio, diz boa noite pro porteiro e segue em frente. Mas esses caras não têm noção, seguem-no assim na “caruda”, mesmo? Sobe pelas escadas e ainda ouve esses passos - como de cachorro andando na madeira encerada. Os andares vão passando e o esforço é tremendo - já passa do décimo andar, em puro desespero... Algo como uma luz começa acender no canto superior direito de seu olho direito. Dentro dessa luz, como pétalas numa flor e no centro, como se tivesse uma cena acontecendo. Na cena era ele... Mais jovem, mais forte... Usando uma roupa engraçada. Algo agarra seu tornozelo: era uma mão esverdeada com manchas. Uma mão velha (ou sapos). Ele vira-se assustado; o chapéu da criatura cai, revelando uma cara - que não era bem uma cara, mas ele sabia que era equivalente a uma; sabia porque já soube antes, mesmo com as folhas e tudo. Se ele soube antes, saberia de novo; nunca se sentira tão autoconfiante. Com movimentos que achou ser humanamente impossível e uma caneta que estava no bolso da sua camisa, ele matou (agora que prestava atenção nos cadáveres) cinco criaturas. Sentia-se eufórico, feliz, realizado. Quando havia descido alguns lances de escada, um homem barbado:
- É bom tê-lo de volta, senhor.
- É sempre bom fazer o que se gosta!
Nosso florista abre um zíper no ar e entra.
- Nos vemos mais tarde.

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