segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

domingo, 23 de janeiro de 2011

ARCA DE NOÉ

Tem chovido tanto que em breve a única opção de balada será a Arca de Noé.
O que não é de todo mal, pois lá, todos têm seu par.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

OS PORTÕES DA TERRA

Sempre falam dos “Portões dos Céus” e nunca falam dos “Portões da Terra”. Então acho que os Portões da Terra estão jogados as traças desde sempre. Deve ficar só encostado e qualquer um que quiser entrar pode. É só chegar, chutar e entrar. Sem perguntas, sem nada. Pra dizer que não há controle algum, imagino que tenha uma placa enferrujada dizendo: ‘Caro usuário, se deseja usufruir dessas instalações, por favor, faça-o conscientemente’. É a única explicação. Duvido que seja igual aos Portões do Céu com um santo de porteiro. Se não, pense como seriam os diálogos...

- Me diz um negócio, como faz pra entrar no Planeta Terra?
- É simples, você me diz seus planos de vida, eu os julgo e digo se você pode entrar ou não. Mas já vou dizendo que somos bem rigorosos.
- Putz... Nem me preparei. Mas vamos lá... Eu... É... Eu tenho em mente criar uma forma de controle populacional localizado, baseado na erradicação de deficiências humanas para que através dos anos nós, seres humanos, possamos alcançar a perfeição! Tipo Jesus Cristo, mas usando nossa própria tecnologia!
- Ge-ni-al, cara! Sabe, também acho que se vocês fizerem um plano bem estruturado Deus vai notar o esforço e interesse e liberará mais recursos. Muito bom mesmo!
- Fico feliz que tenha gostado, acabei de ter essa idéia...
- E como você pretende fazer tudo isso?
- Basicamente matando todos os judeus, aleijados, homossexuais e quem mais discordar de mim!
- É o que dizem! Se lhe derem limões, faça uma limonada! Boa sorte!

Ou ainda...

- Quero entrar no Planeta Terra e me tornar humano.
- Calma lá! Aqui não é assim! Você tem que me dizer ao menos a que vem...
- Claro. Tenho em mente balançar as estruturas! Pretendo transformar todos os conceitos médicos, sociais, legais, sanitários e até religiosos!
- Ótimo! É disso que precisamos, gente com vontade de fazer! Gente com iniciativa!
- É disso que estou falando!
- E como você pretende fazer tudo isso?
- Transando com macacos!

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

RASCUNHO DE UM CONTO

Narrador está no shopping, numa farmácia (comentar como os remédios estão dispostos como se fossem produtos que deveriam ser consumidos com freqüência). Na fila para pagar, a um metro do vidro, do lado de fora, ele vê um homem que o encara. Nada de especial sobre esse homem, tirando o fato de que ele o encara fixamente. Falar sobre o fato de inicialmente olhar em volta para ver se é com ele, depois achar que era um conhecido e espremer os olhos para tentar lembrar, depois meio que sorrir para ver se o homem se manifesta e finalmente o total constrangimento pelo fato de não entender nada. Narrador vai embora, e o homem o segue com os olhos até onde pode. Falar sobre a impressão que isso causou e um final bizarro.
OBS: E se o protagonista tivesse o poder de fazer as pessoas sentirem por ele o mesmo que ele sente por elas – igualzinho? Não sei se isso seria uma solução ou um problema maior ainda.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

O RESTAURANTE

As pessoas chegam leves, bem humoradas, com jogo de cintura, tolerantes aos preconceitos alheios assim como aos próprios (usando bom senso claro) e saem chatos. Bom senso é a área cinzenta da humanidade. Criticar nem sempre vem da total falta do que fazer (só na maioria das vezes). E certa hora aparece um abraço e um beijo na testa. Na testa! Não tem nada melhor pra lembrar sobre o que tudo isso aqui se trata do que a decepção. Nem certo nem errado, cinza. No inferno todo dia é Terça Feira. Provavelmente vendem Binóculos como petisco e como sobremesa tem sempre Empáfia porque não consegui pensar em nenhuma metáfora pra isso. Sem dúvida existe um restaurante em São Paulo que vende Colunas Gregas no almoço. Todos os silêncios desconfortáveis são melhores do que pessoas falando (geralmente). Um dia ruim nas férias é melhor que um dia bom no trabalho. No politicamente correto exagerado parece que só o cérebro se desenvolve. A digestão transforma você numa cópia de quem você era. Tipo Body Snatchers.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

ETIQUETANDO PESSOAS NAS HORAS DE TÉDIO

Atrizes: desesperadas por atenção, em qualquer instância da vida vestem-se de shorts, camiseta e cachecol (?); só falam de filmes que teoricamente eu não teria visto ou peças que eu realmente não vi, e me acham fútil. Nunca sei se eu deveria tentar algo, porque nunca sei qual é a delas.

Artistas visuais: vivem no mundo do non sense em tempo integral e acham que todo mundo tem que entender pensamentos não-lineares e achar lindo. Acham-me inculto e crítico demais, mas me criticam o tempo todo. Nunca sei se eu deveria tentar algo, porque nunca sei qual é a delas.

Musicistas:

a) meninas eruditas: não me levam a sério como músico e a comunicação fica difícil;

b) meninas do mundo pop / MPB / folk: acham que sou muito comercial (?) e pouco técnico e também muito barulhento – logo, não me levam a sério;

c) meninas do róque: acham que sou mais delicado que elas e ouço músicas de frouxo, então não me levam a sério.

domingo, 16 de janeiro de 2011

UM VAGABUNDO NA ALTA RODA (DOWN AND OUT IN BEVERLY HILLS)

Em julho, quando estava pesando noventa e cinco quilos, meu sonho era chegar aos oitenta e quatro. Agora, com oitenta e três, almejo chegar aos oitenta redondos. Logo que comecei com minha banda, meu sonho era tocar nos bares que freqüentava. Mais para frente, tocar naqueles mesmos bares me parecia algo tão amador... No meu primeiro emprego eu ganhava bem pouquinho e via meu salário de hoje em dia como uma quantia vultosa. Agora, meu salário parece tão ínfimo... Não acredito que seja apenas culpa da inflação. Quando dormia numa cama de solteiro nunca senti necessidade de uma cama maior. Hoje em dia durmo sozinho numa cama de casal e não me imagino dormindo em nada menor que isso. Um amigo meu, que namora há dez anos a mesma garota, disse-me que se um dia ele acabar com ela e arranjar uma nova, eles estarão morando juntos em um mês. Você pode viver dois séculos comendo restos e revirando lixo, mas após uma semana comendo apropriadamente, não há mais volta. Namorei com mocinhas especiais, mas nenhuma, nem antes e nem depois, compara-se com aquela mais especial de todas, e agora não consigo dissolver esse parâmetro de mim. Essa comparação vai para tantos lados e é tão humana... E pensar que na primeira vez que notei esse assunto foi assistindo ao filme do título no Supercine.

PHILIP K. DICK

E como numa história de Philip K. Dick, ele jogou o envelope sobre a mesa dizendo-me que tudo que eu conhecia e sabia era papo furado, e que na verdade eu era um brinquedo. Um brinquedo quebrado, para ser mais exato. Perguntei o que significava tudo aquilo, e girando um palito na boca ele me explicou que me seguiu por semanas e me observou como havia pedido, e a conclusão era óbvia. Eu era um brinquedo. Um brinquedo quebrado, para ser mais exato. Pedi uma bebida para mim, ele tomou sua própria. Explicou-me que minhas funções não estavam em ordem, e ele não se referia ao meu intestino. Disse que como um programa ‘trial’, eu funcionava direito até certo ponto, mas na hora de salvar... Nada feito. E repetiu, procurando por melhores imagens: é como... Um brinquedo... Um brinquedo quebrado, para ser mais exato. Essa frase começava a me irritar, assim como aquele chapéu que ele usava. Mas continuei ouvindo – afinal, eu o tinha pagado para fazer esse serviço. Ele me mostrou fotos que provavam que, assim como um controle velho de vídeo game, eu funcionava bem até que um ou dois comandos encrencados estragassem tudo a qualquer momento. Afinal, eu era um brinquedo. Um brinquedo quebrado, para ser mais exato. Meu Deus do céu, eu odeio essa imagem! Detesto essa metáfora! Mas ele era intransigente e finalmente (após fungar aquele narigão) de dentro do envelope pardo tirou a foto do meu problema. Meu problema tinha cabelos castanhos e lisos, usava roupas que quase não combinavam, salvo pelo fato de que elas combinavam, e era tão ela mesma que me deu azia. E finalmente entendi que eu era um brinquedo. Um brinquedo quebrado, para ser mais exato. Saco...

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

PERFEITO

E após tanto sofrer, tanto incômodo, tanto desconforto consigo mesmo, nosso herói finalmente teve a revelação. Não, meus amigos, não o tomem por um desvairado, não o vejam como um fraco, nem como um covarde. Ele tentou. Nosso herói tentou tudo. Remédios, conversas, terapias... Mas nada lhe trazia conforto, nada lhe era um ombro amigo. Não havia sentido nas religiões, a sociedade não valia a pena, beber estragaria seu fígado e sobre todas as certezas ele tinha uma: aquilo não podia continuar assim! Quando se tem muita informação, o que devemos fazer? Nosso querido mocinho usou a cabeça, o coração e corpo pra colocar em prática. Qual era seu maior desejo? Quais seriam as atitudes que deveria tomar para voltar a ser feliz, para dormir à noite, para andar por aí sem medo de ser feliz? O protagonista desta narrativa somou tudo que aprendera na vida, adicionou tudo que aprendera da vida e dividiu por dois. Tirou a média. Levantou da cama agitado, ansioso, quase falando em voz alta para não esquecer seu plano. Plano que demorou a vir mesmo com tanto esforço mental, emocional e físico. Plano que parece ter vindo só quando ele desistiu. Sentou-se à mesa, pegou seu bloco de notas e começou a fazer uma lista. Ele poderia fazer no computador essa lista, mas estava desligado, a idéia poderia sumir de sua cabeça e ele não queria isso de forma alguma. E sua lista era grande, sua lista começava na pré-adolescência, e vinha, vinha, vinha até chegar aos dias de hoje. E chegava em grande estilo, com letra bonita, nome e sobrenome, alguns até com observações de como e quando. Era como um grande roteiro de viagem, tudo ligadinho, um esboço da viagem de família, um rascunho de uma música, os rabiscos iniciais de uma obra prima que superaria a Mona Lisa fosse ela uma pintura. Poucas vezes ele voltou para o topo da gloriosa lista para rasurar um dos itens. Poucas vezes, bem poucas vezes mesmo. Ao terminar estava eufórico, mas cansado. Voltou à primeira página e a nomeou “Lista de afazeres para o ano novo”. Os dias foram se passando e nosso herói parecia ter finalmente achado a chave da felicidade, a solução dos seus problemas, o sentido da vida, seu talento nato. As pessoas começaram a sumir. Algumas deixavam namoradas para trás, outras deixavam namorados. Alguns deixavam casos, irmãos, pais, professores, alunos, pacientes, clientes, cães, gatos, periquitos, filmes sem devolver para a locadora... Todos deixavam algo para trás. Menos nosso querido protagonista. Ele não deixava nada para trás. Ele sabia como fazer, pois fora feito para aquilo. E à medida que o tempo foi passando foi ficando melhor nisso, e foi ficando mais feliz, e mais leve e com isso mais saudável e mais bonito e mais cheio de esperança de um mundo melhor onde viver seria um prazer e não um fardo. Muitas vezes quando via num filme, ou lia no jornal ou quando ouvia alguém conversando num bar que não havia crime perfeito, ele apenas sorria como quando uma criança diz que vai pedir presente para o Papai Noel ou quando um crente diz pra ter fé em Deus perto de um ateu convicto e seguro de si. É claro que existe o crime perfeito, tão perfeito que nem crime é e por isso é tão perfeito. É simples, basta deixar rolar, é só agir com naturalidade, é só ser ele mesmo. Um homem e sua missão: ser feliz.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

SÍTIO

Quando era pequeno sempre me perguntava onde certas pessoas, como os funcionários dos pedágios, ou os frentistas de posto de beira de estrada moravam ou como elas faziam para ir pra casa. E assim que vim trabalhar como caseiro aqui do sítio cheguei a uma resposta. Sempre que vou à cidade mais próxima e encontro meus amigos sei onde aquelas pessoas moram. Sou caseiro de um sítio num lugar que pode ser considerado qualquer lugar. Pode ser interior de São Paulo, pode ser periferia, pode ser realmente qualquer coisa. Prefiro classificar como preenchimento do espaço de terra que há entre as enormes propriedades dessa gente cheia da grana. Ou como eles chamam, sítios. Bom, já que resolvi contar minha história, vou me apresentar, o meu nome ao importa, mas sou casado, com uma filhinha de dois anos. Entristece-me muito lembrar delas. O que terá acontecido? Por que será que ninguém mais vem aqui? Será que elas fugiram? Não, é muito pouco provável... A minha solidão deve ser parte desse pesadelo que venho vivendo nas últimas semanas. O local onde moro e trabalho é uma propriedade da família Gomes. Como é de se esperar, eles têm muito dinheiro. A propriedade é cercada por uma longa e extensa cerca de arames farpados reforçada por fios eletrificados que costumavam ser ligados apenas durante a noite. A casa também está protegida por um alarme. Minha função aqui era basicamente manter o local em ordem, o que fazia com grande competência, limpava a piscina, cortava a grama, fazia pequenos, médios e grandes reparos e minha mulher limpava a casa. Os Gomes vinham pra cá quase todo fim de semana até algumas semanas. Deixe-me esclarecer algo, no último fim de semana que vi minha mulher e minha filha, e também qualquer outra pessoa, apenas a filha mais velha e seus amigos tinham vindo, acho que era alguma coisa a ver com formatura sei lá, coisa de rico. Naquela tarde, minha esposa foi com minha filha para a casa de uma amiga em São Paulo, e como combinado, só voltariam no outro dia pela manhã para continuar me ajudando com os deveres. Até agora não sei se a viagem delas foi boa ou ruim. Pelo menos não vi nada de terrível acontecer a elas, caso algo tenha acontecido. Na realidade, não vi nada de terrível acontecer com ninguém, apenas senti. Naquela noite, quando eram mais ou menos vinte e três horas, subi à casa principal e avisei que estava ligando a cerca elétrica, até aí, nada de novo, era habitual. A cerca faz um apito ao ser ligada e dois ao ser desligada. O mesmo ocorre com o alarme da casa. Os sons são parecidos, mas pra mim, que ouço isso todo dia, são absolutamente diferentes. Quando estava deitado já na cama esperando o sono chegar, é difícil quando meus maiores tesouros não estão ao meu alcance, eram umas três da manhã, ouvi o alarme da casa ser ativado. Na manhã seguinte a cerca não queria desligar por nada nesse mundo, então fui avisar aos jovens para não se aproximarem ou seriam eletrocutados. Espantou-me quando interfonei e ninguém atendeu. Então, continuei minhas obrigações. Quando era meio-dia, achei estranho ninguém ainda ter acordado, mas eles deviam estar todos de ressaca. O que mais me preocupava era se minha mulher encostasse na cerca. Então fiquei de guarda por uma hora. Como já era hora do almoço, resolvi ligar, afinal, elas deveriam estar aqui de manhã. O telefone estava mudo. Devia ser alguma pane. Quando já passava das três, minha preocupação já era grande. Onde estavam minhas queridas? E, tenha paciência, como podem dormir tanto esses filhinhos-de-papai? Resolvi que iria até lá tentar em outro telefone. Bom, teria que me cuidar pra não disparar o alarme, seria triste o resultado e o pânico dessa juventude e ainda mais a culpa que levaria mais tarde. Cheguei bem próximo da janela da sala. Tudo estava exatamente como eles provavelmente haviam deixado. Mas será que todos haviam ido dormir nos quartos? Poxa, a casa era grande e os quartos também, mas isso já era um exagero. Eram mais de quinze pessoas, sem contar as malas cheias de coisas que provavelmente não teriam tempo de usar nem em um mês. Dei a volta na casa pela varanda tomando cuidado com os fios de alta tensão e espiei pela janela do quarto. Minha visão estava bastante dificultada pelas venezianas, mas ainda, me contorcendo um tanto, podia ver o interior dos quartos para saber que estavam vazios. Que diabos! Seria possível que... Não, a idéia era muito absurda. Que tipo de gente faria isso? Voltei pra varanda e sentei-me no chão de costas pra parede, de onde podia ver mato e árvores e mais mato e árvores. A casa mais próxima ficava não muito longe, mas infelizmente atrás da colina, o que impedia a comunicação nem que fosse visual. Voltei a pensar nas minhas queridas e na absurda possibilidade que me ocorrera há pouco tempo e outra já me vinha a cabeça, bem mais provável. Levantei-me e fui pegar a escada de madeira, seria difícil, mas tinha que ser feito. Colocada a escada no local certo, reforçada com pedras e uma cadeira, se caísse seria fatal. Seria possível que aquele monte de adolescentes cheios de frescura resolveu passar a noite no sótão? Lá era quente e abafado até no inverno, imagina pra quinze, vinte adolescentes e ainda mais nessa época do ano. Desloquei uma telha, fazendo um barulho inacreditável, se tivesse alguém lá, reagiria desesperadamente, o que não aconteceu. Enfiei a cabeça lá dentro. O calor quase fritou minha cara. Quando meus olhos acostumaram, notei sem surpresa estar vazio. Fechei a telha o melhor que pude e desci. Pensando agora, me pergunto por que guardei a escada? Não acho que agora faz muita diferença. Só me restou pensar na primeira coisa que me ocorrera, todos eles de alguma forma saíram durante a noite e de alguma forma miraculosa conseguiram desligar, sem que notasse, os inúmeros alarmes, o que considero, mesmo agora, um absurdo, quase uma ofensa à minha percepção. Bom, mesmo que tenham conseguido isso, não se explica o desaparecimento de qualquer outro ser humano das redondezas, ou as minhas queridas não terem voltado, ou o telefone mudo, ou os alarmes impossíveis de desligar. E o pior de tudo, que nem tenho coragem de pensar... Por quê? E por que eu...

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

PRÉDIO

Existem tantos cantos naturais no mundo em que o ser humano não vai. Não vai, ou vai pouco, ou desconhece ou conhece e sabe que não é pra ir. E também tem um tanto de outros cantos que o ser humano constrói. Tomemos por exemplo esse prédio de apartamento. Área nobre da cidade grande. Provavelmente construído por um arquiteto de nome, numa época que era tudo bem construir um prédio desse tamanho, pra tanta gente. Provavelmente dos anos 60. Deviam anunciar como “nosso prédio de apartamentos tem área para as crianças brincarem, mercado, barbeiro e tudo mais que sua família precisa bem pertinho”. Bem pertinho significa nesse caso que o prédio foi construído sobre o que hoje é um supermercado e um banco. Antes, provavelmente um monte de lojinhas simpáticas. Monobloco, porém dividido em quatro blocos. Olhando de longe se tem a impressão de que há muita gente morando nesse prédio (e há mesmo). De longe ou de perto. São famílias de jovens médicos ou advogados, ou casais de idade, ou famílias que receberam os apartamentos como herança. Podemos ver crianças brincando com suas babás no grande jardim com bancos de cimento que tem na área na frente do prédio, área que serve como teto para o banco e o supermercado. Podemos ver meninas de quinze anos ou senhoras de oitenta saindo para passear com seus poodles ou outros cães pequenos e brancos com batidas cardíacas aceleradas. Podemos ver senhores judeus voltando pra casa e até um ou outro tipinho mais alternativo chegando de bicicleta, e cumprimentando o porteiro pelo nome. Tudo isso junto no mesmo prédio. Olhando de longe podemos ver pouco pelas janelas. Só um constante movimento, que de tão pequeno e tão constante parece parado. E não ouvimos nada. A não ser aquele estampido que poderia ser uma tabua caindo na construção ao lado, ou um escapamento ecoando pelos prédios e chagando deformado. Ou poderia ser um tiro vindo de um dos cento e tantos apartamentos desse prédio de bairro tradicional. Nesses prédios, todo o lixo é trazido numa caçamba. E colocado no mesmo local que o lixo do supermercado. São sacos e mais sacos de lixo. São verdes, pretos, marrons. De plásticos, de papel. Garrafas, plantas, caixonas de papel. Tem de tudo. Ouve-se o caminhão de lixo na rua de trás. Tem vezes que os próprios moradores pedem para a empregada levar o lixo por algum motivo. E raramente, tão raramente que deve ser a primeira vez, aquele senhor trás ele mesmo o lixo. Obviamente tem dois sacos de lixo, reforçando pra não arrebentar. E ele olha pra ver se não deixou rastro. Chorume certamente. O caminhão do lixo passa momentos depois e o lixeiro pega os sacos. Pega e faz uma cara estranha do tipo “foi mais pesado que eu imaginava”. Pra onde será que vai todo o lixo desse prédio? Pra onde será que vai todo o lixo dessa cidade? Será que se um dia encontrarem algum documento seria possível rastrear de que área veio? Provavelmente não, mesmo porque, se for um documento importante o dono iria atrás e não os funcionários do lixão. Então usemos como exemplo um corpo todo fatiado envolto em jornal pra fazer o saco ficar mais arredondado e menos chamativo. Nesse caso, será que seria possível rastrear de onde veio? Olhando pelas janelas do prédio, vemos cortinas esvoaçando, podemos ver um ou outro morador apoiado no parapeito fumando um cigarro ou apenas olhando, ou podemos ver ainda as luzes da TV. Tem TVs pequenas, tem TVs de plasma, daquelas bem grandes que podemos ver o que a pessoa está assistindo se tivermos conhecimento prévio do programa ou do filme. Assim como naquela ali, que tem alguém assistindo “Janela indiscreta”.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

SEMPRE

E então notei que caminhava fazia tempo. Olhava a paisagem, tentava ver o final da estrada. Após a colina, que vinha depois do vale, não tinha muita certeza se era mesmo ali que acabava, mas ficava meio confusa com a vegetação e minha vista já não chegava a tanto. Ouvi alguma coisa chamando minha atenção. Não meu nome, a atenção. Lá estava desviada de novo para algo que a chamava como se chama um amigo que de tão íntimo nem precisa de palavras. Olhei pra frente, não vi nada. Para os lados, também não. Olhei pra trás. Havia uma pequena multidão. Estavam há alguns metros de mim e acenavam felizes e silenciosos. Não felizes por me distanciar, mas felizes como numa fotografia, moviam-se e, por mais que andasse, a distância continuava a mesma. Então resolvi ir até eles, mas quando me direcionei, eles se afastaram sem andar. Sempre alguns metros. Iguais à realidade, mas da forma como me lembro. No colo de uma das minhas avós, um dos meus ursos de pelúcia que dava pra lavar na máquina de lavar. Minha outra avó, sentada de pijama branco e havaianas, balançava os pézinhos e se apoiava nos punhos, feliz. E tinha um menino pequeno com uma fantasia engraçada e bem sorridente, e meus irmãos e minha irmã e meus pais e esse núcleo familiar era vários, de diferentes idades, tamanhos, ânimos. E os meus amigos também, alguns eram tão pequenos e logo ao lado um outro deles, maior. E tinha aqueles que nem sei quem são ou o que faziam lá. Tinha a mulher que amo que junto com minha mãe parecia ter convidado todos e elas eram tantas e estavam em todos os lugares. Meu pai carregava um menino no colo e esse menino olhava seu nariz e brincava com um boneco de fantoche e ria com meu pai que também tinha uma versão de terno e uma de roupas divertidas e um pano de pratos no ombro fazendo algo bom pra comer. Meus irmãos animavam o povo todo e sabiam tantas coisas e eram muito simpáticos com todos e não poderiam não ser e minha irmã quietinha morria de rir de tudo isso, eram várias dela, e elas riam e sorriam e faziam muitos "jóinhas" com a mão. Meus amigos pareciam um pára-choque, ficavam fixos, firmes, não se movimentavam para os lados, mas estavam ali iguais a quando a gente olha pra lâmpada e fecha os olhos depois. Num canto tinha uma sacola com um monte de truques de mágica feitos de plástico e tinha nhoque num restaurante no centro da cidade e tinha um menino fazendo umas besteiras graves, todos acenando e dizendo da forma deles que aquilo era um sorriso e tinham coisas que simplesmente eram um sorriso. Um soluço pulou de mim. Fiquei na dúvida se era um soluço que introduzia lágrima ou risada. E fiquei sem saber. Olhei pra frente e continuei andando e continuo sempre. E a alguns metros de mim também continuam sempre.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

WHATEVER

... E as luzes roxas, laranjas e às vezes me parecem pretas... Mas a lógica me diz que não existem luzes pretas na escuridão, ou elas não seriam vistas... E também não seriam chamadas de luz e sim de breu... E o som é abafado e o som é preto...
Sinto-me bem enquanto estou parado. Algo me diz que preciso sair daqui... Ir... Embora? Embora pra onde? De onde? Agora me movo e noto que minha cabeça dói loucamente, e o pescoço. A cabeça deve ser ressaca, falta de água, álcool de barriga vazia... O pescoço deve ser da posição que eu estava dormindo. Será que eu estava dormindo ou tinha desmaiado... Será que me carregaram? Que tipo de gente que ajuda um inconsciente o colocaria no chão úmido? Deliberadamente eu desmaiei aqui, agora que me olho no espelho vejo um pouquinho de sangue seco que escorreu do meu nariz... E como o maldito dói! Deixe-me conferir o que mais está errado... Carteira aqui, chaves aqui, roupa úmida... Imagino do que... É uma judiação o que fazem com essas casas em festas... E a julgar pelo banheiro, essa casa é antiga, grande e bem cuidada... Uma judiação. Belo trinco, porta pesada... Meu Deus como essa música é barulhenta... Essas luzes de novo... Elas rodam, rodam, rodam... Pelo menos não sinto mais náusea... Será que vão perceber que eu mijei em mim mesmo? Será que esse mijo é meu ou estava no chão?
- Whatever...
Fui eu mesmo que disse isso... Que hábito besta... Mas eu nem sei o que faço mesmo, quem se importa em apoiar a língua dos dominantes... Será que eu falei isso alto? O pessoal aqui é decadente... Olha essas roupas... Aquela é bonitinha... Ah, chega de lésbicas... Onde foram parar as pessoas normais... Pelo menos as bissexuais... Será que eu falei isso alto? Será que estou sorrindo?
- Whatever...
Esse fui eu, consciente de meu anglicanismo vendido... Meu... Como eu vim parar aqui... Essas luzes não param, essa música não pára... E as pessoas parecem amontoadas no sofá... Parecem que estão segurando as colunas... Poxa vida, que pessoal estranho... Eu não sou daqui... Onde quer que aqui seja... Meu nariz tá doendo, preciso ir pra casa, dane-se a carona eu vou embora... Deve ser por aqui... Será que tem que pagar? Será que eu falei isso alto?
- Whatever...
Ah, uma luz fixa! É ali mesmo... É ali mesmo... Luz amarelada, caseira, igual à da sala da minha casa. Ah, minha casa... Minha cama, desarrumada, mas minha. Não há nada melhor que minha casa...
Música mais baixa, visão mais definida, um vaso. Um vaso! Que divertido, no meio dessa barbárie, dessa putaria sem fim (pelo menos vou descrever assim quando for contar onde vim parar hoje) encontro um vaso com... Trigo? Isso é demais... Essa eu falei alto sim! Acho que está tudo melhorando, vejamos, onde estou? Bom, fica pra mais tarde, não lembro ainda... Nossa que hall gigante, não chego nunca à porta... Nossa! Não é a porta da saída, é um elevador! O vaso com trigo está do lado da porta do elevador! Igual no apartamento da minha tia... Hahahaha isso está ficando fácil... Ai, ai... M... Elevador demorado... Será que esse elevador faz plim quando chega? Não faz. Mas a porta faz vuuuch... Hehehe... Deixa eu entrar aqui e descobrir a quantos andares do chão eu me... Opa! Tem gente do meu lado! De preto como todo mundo aqui... Magra e alta como todo mundo aqui... Magra... É mulher... Mmm... Está entrando comigo no elevador então deve estar indo embora também. Será? Não custa nada tentar... Acho que o mijo em mim não é meu mesmo... Nossa que linda... Será que eu disse isso em voz alta?
- Whatever...
Ops, ela me olhou em dúvida... Alguma coisa eu disse em voz alta, que mico.
- Em... Am... Você... (nossa, como posso pensar mas não saber nenhuma palavra?) eu... (vou sorrir pra ver se ela nota que estou em dificuldades) am... (ah, que bom, ela sorriu de volta) você saberia me dizer... Onde é... Onde fica... A porta de saída? Tipo... (olha só, ela sorriu de novo, que linda quando sorri) é que eu, sabe, tô... (bobo) meio mal... (idiota) nunca vim aqui! (ela sorriu de novo! Nossa vou bater um recorde, vou catar uma mina mijado... agora o mijo pode até ser meu!).
A porta abriu, será que ela vai me levar pra porta ou me dar uma carona? Eu seguiria esse sorriso até a Vila Carrão... Se é que não estou em Vila Carrão... Ops, devo ter dito isso alto porque ela olhou de novo pra mim... Bom, vou seguí-la de qualquer forma... Ela tem o andar firme, deve saber a saída.
- Você... Am... Poderia me dar carona? Acho que estou pior que imaginava...
Que sorriso. Nossa, tá frio.
- Cadê o seu carro?
Precipitei-me. Que carro bonito, será que não tem nada aqui que não seja preto? E que banco macio melhor que minha cama... Não quero mais sair daqui... E o cheiro dela... Que perfume é esse mesmo? Me lembra Natal... Enfeite de Natal... era uma pomba de plástico azul clara com sachê dentro... Quero ficar aqui pra sempre...
- Você vai... Pra... Onde?
Adoro o sorriso dela, mas seria o momento de me dar algum tipo de informação...
- Hein? Aliás... Onde é que fica essa casa?
Será que eu pensei isso? Vou perguntar de novo pra me certificar, mas olha que carro, como desliza sobre a rua, que embalo, que cheiro bom, que quentinho aqui... Que silêncio...
Frio nas costas, frio e ardor. Agora um pano branco bem na minha cara. Tudo branco. Cheiro de hospital. Espera aí! Tudo branco, cheiro de hospital... Cadê a sorridente? Será que foi um acidente? Será que estou deformado? Ouço voz de homem. O doutor!

- Ele já estava anestesiado?

Pelo jeito não! Senti algo nas minhas costas... E agora uma voz feminina, doce... Pomba de sachê de plástico.

- Sim. Não sentirá nada.

Nossa! Não sentirei nada? Isso queima! Muito! Que zumbido é esse? Que frio... Zumbido, frio... Zumbido frio... E as luzes roxas, laranjas e às vezes me parecem pretas... Mas a lógica me diz que não existem luzes pretas na escuridão, ou elas não seriam vistas... E também não seriam chamadas de luz e sim de breu... E o som é abafado e o som é preto... Isso queima! Muito!
Será que eu falei isso em voz alta?
- Whatever...

domingo, 9 de janeiro de 2011

TIMIDEZ

Junho, mês dos namorados. O sol brilhava solitário no céu azul das épocas mais frias. O dia era o décimo primeiro. O local era um ponto de ônibus numa das travessas ali perto da Consolação. Esses lugares que fazem até esquecer o quão horrível é a cidade. No ponto de ônibus encontram-se Kelly e Astolfo. Ela fala ao celular, ele olha no relógio.

- ...Diz que é a Kelly!

O rapaz, que até agora não a tinha notado, fica indisfarçavelmente boquiaberto. Era a visão mais bela que jamais tivera em todos os seus anos de vida. Mas... São demais os preconceitos nesta vida e o nome Kelly lhe pareceu pouco inteligente, loira demais, muito materialista, e por ser um nome, informação herdada, concluiu que não só ela era pouco esperta como toda a sua linhagem também. Então, para si mesmo admitiu: “zebra”.
A garota, por sua vez, terminando o diálogo ao celular, dispara de forma casual:

- Sim, sim, eu posso apresentar aquele mestrado um mês antes sim! Afinal, já o terminei faz uma semana! É, é, ciência patafísica é meu assunto favorito, amigaaa...

Astolfo sente cãibra no pescoço. É um sinal óbvio de paixão, observado por ele mesmo desde os tempos de primário. Tentou mexer a cabeça. Nada. Era paixão mesmo. A dor não o agradava e assim tentou mais algumas vezes se mexer, o que chamou a atenção da linda garota.
Kelly era jovem, linda, inteligente e, ainda por cima, dormia de meias quando dormia sozinha. O que infelizmente vinha acontecendo há algum tempo, já. E foi pensando nisso que ela notou o rapaz em seu ritual de relaxamento do pescoço. Se pudéssemos ouvir seus pensamentos, eles seriam “Que gracinha de rapaz! Que ar culto ele tem! Vou perguntar as horas”. Mas... São demais os preconceitos nesta vida e os óculos de tartaruga e a meia levantada lhe pareceram muito pouco apropriados. Então, conclui para si mesma: “nerd”.
Mas Astolfo, apesar de assistir novela de tarde, não era de todo alienado, e notou que a musa de sua vida movera-se um milímetro em sua direção. Será que ela estaria indo em sua direção? Será? Não! O que uma beleza dessas iria querer com ele?
Bom, a estonteante jovem também tinha suas dúvidas e apesar de ter pensado seriamente em ir lá falar com o menino com mau gosto para se vestir, resolveu não ir por achar que ele pensaria que ela era muito atirada e talvez até, baseado na sua teoria desenvolvida na época do colegial - época também que ela usava aparelho, óculos e camisetas do Metallica -, toda menina atirada era também... burra!
É, meu caro Astolfo, quantas dúvidas cruéis um cérebro bem instruído pode nos trazer, não é? Tanto estudo, tanto interesse pela psique humana para no final conseguir lembrar apenas do maior de todos os chavões: “O cachorrinho tem telefone?”. Pois é. Mas a lógica acima de tudo, e ela não tinha um cachorro. Pelo menos não ali.
Os anos com a psicóloga adiantaram muito e fizeram a menina bobinha se transformar na jóia que agora observamos no ponto do ônibus a pensar se aquele homem de pescoço duro teria realmente se virado para ela. Mas foram os conselhos das amigas de oitava série que fumavam escondido que preponderaram quando ela, num ato de desespero, tirou seu casaquinho de crochê e arrumou o cabelo de forma muito - e repito - muito atraente, enquanto pensava “Vou lá e digo: Tudo bem? Que horas são?”.
O torcicolo de Astolfo constituía um pescoço duro. Ao ver a atitude de Kelly... Imaginem o que! Nada poderia parar aquele homem. É isso, ele tinha que ir lá! “Viro e pergunto: sabe que horas passa o ônibus!”
E foi nesse momento, naquela véspera de dia dos namorados, num bairro bonitinho, num dia de céu azul que Astolfo e Kelly se conheceram. Ambos se desejavam. E se fossem conhecidos, saberiam que não era só fisicamente. O diálogo foi como segue:

- Você sabe... – soltou ele.
- Tudo bem... – gaguejou ela.
- ...a que horas... – o pescoço duro.
- Que horas são... – a boca seca.

É. E foi tudo. Pelo menos por hora.
Ah, são tantos os medos! São tantos os preconceitos. São tantas as desculpas esfarrapadas. Ele poderia jurar que era o maior dentre todos os otários do mundo, se não tivesse lhe ocorrido antes que ela devia se achar muito boa pra ele - um cara num ponto de ônibus! Ainda mais com aqueles óculos de reserva que estava usando... Também, quem mandou perder o BOSS? A culpa era dos óculos, e ele os tirou furiosamente do rosto.
E ela? Ela ficou com vergonha de saber que havia feito tantas aulas de dicção para nada... Isso lá é verdade. Mas palavras como beldroegas e cretino, tão carinhosamente aprendidas do dicionário, foram substituídas por outras que não são de bom tom reproduzir aqui. Mas no geral foi mais ou menos isso: “Bobo! É mesmo um nerd! Tira os óculos como se fosse “o” sabe tudo! Tolo, aposto que nem sabe o que é patafísica!”.
Nem todos os livros de filosofia poderiam responder onde estava o ônibus que ele esperava, e por que a lei de Murphy se aplicava com tanta constância em sua vida. E foi isso mesmo. As palavras que eram para ele escapuliram...

- Êta lei de Murphy!
- Quê? – pergunta ela, recolocando a blusinha delicada de crochê.
- Não! Não nada!

Enquanto se abotoava, ela pensou no que foi que ele tinha dito. Lady o quê? Smurf? E se ele fosse um daqueles nerds tarados por personagens de desenho animado? O visual conferia. Foi inevitável olhá-lo de forma desconfiada.
A situação já era hecatômbica, e ele não suportava mais o pescoço e aquela garota estranha que ficava olhando pra ele assim! E se ela for... Ah, não! Ele lá, todo-todo para uma possível... Vulgívaga!
Era demais para os dois, eles tinham que ir embora. Dane-se o ônibus, andar faz bem. Os dois saem um na direção do outro, fazendo com que se trombem.

- Desculpe! – ela segurando a bolsa contra o peito.
- Desculpe eu! – mãos para trás.

Um pouco mais distantes foi inevitável:

- Tarado!
- Vagabunda!

SABRINA

Sabrina.
Não que sua mãe tivesse lhe dado esse nome, mas era assim que a moça dizia quando se apresentava, desde os catorze anos, desde que começara a ler romances de bolso vendidos em banca de jornal. Agora já nem sabiam seu nome de verdade e ela mesma muitas vezes esquecia. É comum.
Sabrina ia todo dia para seu trabalho de ônibus e ao se aproximar lembrava como achava divertido o letreiro que tinha como letra inicial algo que poderia ser lido tanto como H como M. Ela chegava às 23h e ficava até 6h, então a outra atendente chegava e a rendia. Seu trabalho era simples, pedir documentos das pessoas que chegavam de carro, descrever assim por cima os quartos se perguntasse, e entregar a chave do que nas próximas horas, seria um ninho de amor ou apenas um antro pecaminoso dependendo da sua crença.
Sabrina trabalhava muitas vezes acompanhada de Irene (que se chamava Irene mesmo, dizia ela) e algumas vezes de Dona Márcia. Porém, nessa noite a portaria estava totalmente em sua responsabilidade até a 1h. Irene estava doente, apanhara "uma friagem brava agora em junho" e Dona Márcia ajudaria em outro departamento até esse horário. Acontecia às vezes e Sabrina até sentia um pouco de medo, ficar ali, naquela cabine durante a noite, numa parte rebaixada da via, olhando o matagal e a construção interditada do outro lado da estrada. A estrada a noite era bem escurinha em volta e bem iluminada debaixo das lâmpadas, mas principalmente solitária.
Sabrina atendia alguns telefonemas pedindo pra fechar a conta do quarto, lia um pouco dos romances de bolso vendidos em banca de jornal e, claro, atendia os clientes que entravam e saíam.
Essa noite era uma terça feira e Dona Márcia ainda não tinha chegado para lhe fazer companhia, apesar de já ser 1h15. Sabrina ligou para o escritório e Seu Borba foi muito grosso com aquela voz de safenado dizendo que Dona Márcia "já ia já, já". Ao desligar o telefone, ouviu um clique atrasado. Mas um clique quando se coloca o telefone no gancho é apenas um clique, então, voltou à leitura.
Um carro passa, o vento bate e outro clique, dessa vez obviamente do lado de fora da cabine, mas ora bolas, estamos numa estrada e pedrinhas rolam, voltemos a leitura.
Outro clique.
Bom, que diabos é isso? Sabrina olha pra estrada e o mato balança com o vento e o reflexo da sua própria cabine em alguma coisa da construção inacabada do outro lado da estrada, brilha piscando.
Um carro chega apressado. Os clientes ali sempre estão apressados. É quase como ir ao banheiro, quando chega a hora, chega a hora. "Um quarto por favor!" disse o moço embriagado sem ter bebido. Ao passarem e a chancela baixar, um sujeitinho pequeno, usando um casacão e gorro se aproxima, a pé. E ele vem chegando mas não deu pra ver de onde.
- Um quarto por favor.
- O senhor está sozinho?
-
- Olha senhor, aqui só funciona com quem está de carro ou no mínimo acompanhado.
-
Sabrina tenta ignorá-lo e voltar a sua leitura.
Clique.
- Senhor, é contra a política da casa receb...
Clique.
Era péssimo, seus pés se contraíram imediatamente. O clique do telefone, o clique da pedrinha da estrada, o "clique" vinha do homem encapotado a um metro de distancia dela.
CLIQUE
Esse clique fora bem alto. Bem alto mesmo.
- Olha a-aqui meu senhor, se o senhor não sair daqui vou chamar os seguranças do estabelecimento!
CLIQUE!
Meu Deus do céu, será que as câmeras de segurança não viam o homenzinho ali ao lado dela, ameaçador, encarando-a vidrado, fazendo aquele som horrível.
- Olha...
Ele se aproxima mais com uma passada, Sabrina chega a dilatar as narinas e levantar a parte do lábio superior. Ela pode sentir o suor nas costas e aquela tensão ali em cima, depois da testa.
- Um quarto por favor. Um quarto por favor.
Sabrina agarra no peitoral da cabine pela parte de dentro, seu pescoço dói e a boca seca. Nada disso pode estar acontecendo, não pode estar aconte...
CLIIIIIQUE!
Toda a lógica some de vez. Ela se abaixa dentro da cabine, suando pelas temporas, pelo lábio, as bochechas... Será que não poderia chegar ninguém? E a segurança não via isso? Será que ele a agarraria se ela levantasse a mão para telefonar? Será que ele estaria chegando mais perto?
CLIIIIIIQUEEEEEE!
- Um quarto por favor.
Era impressão ou a voz dele era cada vez mais úmida e... próxima. Sabrina fechou os olhos apertados, apertou as mãos contra a parede e tencionou os dedos do pé dentro dos sapatinhos de salto alto. Ela sentia falta de ar, certamente pois estava chorando muito e não havia notado. Ela só queria alcançar o telefone.
Se Sabrina estivesse de olhos abertos ela teria visto a sombra do braço do homem úmido entrando pela janela e teria visto também suas mãos enrugadas e secas quando a manga do casaco enroscou na janelinha da cabine.
Mas ela não teria visto muito mais do que isso.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

PONTO

Noite. Frio. Nenhuma estrela. Um rapaz de andar pouco convicto acaba de descer de um carro. Acena para a pessoa ao volante, disfarçando o desânimo, e fecha a porta. Fica olhando o Snoopy tenista grudado por ventosas no vidro traseiro.

Boca seca, dor de cabeça. A ressaca é óbvia. Ele acaba de ser deixado num ponto de ônibus. Olhar sonolento, testa enrugada, roupas úmidas, sapato encharcado, calçada estreita. Atrás, um muro chapiscado muito alto e meio sujo de barro da última inundação. A rua média, postes de luz a cada vinte metros. Dois funcionam mal, um oscila. Subindo na calçada, encara o outro lado da rua. Algumas árvores peladas e mato, um grande matagal. "Quem mandou aceitar carona!", pensava com esforço. Acabara de voltar de um churrasco. Com a maior boa-vontade do mundo o dono da casa quis ajudar arrumando alguém que fosse para os seus lados. O alguém escolhido era uma tia meio jovem de um amigo seu que tinha passado o dia todo - ou ao menos parecia ter - olhando para ele com o rabo dos olhos. Isso o ajudou bastante a não pensar muito na hora de aceitar. Isso e tudo o mais que bebera. No caminho ela fora pouco receptiva. Não dissera nada sem ser perguntada, e o que dissera havia sido monossilábico. “De dia aquele sol e agora esse frio!”, “É!”. Nenhum olhar com o rabo do olho. Constrangedor. O que restara a fazer era assistir pela janela embaçada a estrada passar. "Acho que desviou um pouco... mas, se me deixar num ponto de ônibus, eu me viro!" Notara que o caminho estava errado. "Tem certeza?", perguntou a jovem tia sem olhar diretamente, com a voz levemente pastosa por ter bebido algumas também. O que é que poderia fazer agora? "Pode deixar!"

Agora estava ali no meio do nada, sabe-se lá em que região da cidade. Segunda maior cidade do mundo. “Onde estariam os milhões de habitantes agora?”, pensou, antes de olhar no seu relógio, que mostrava 11 horas desde o meio-dia, quando saiu de casa. Ou teria sido quando o jogaram na piscina? Árvores feias, fios de eletricidade cheios de emaranhados de tênis e rabiolas. Até uma imitação de Suzy tinha sido pendurada ali... pelo pescoço, parecia. Não.

O murão atrás era certamente curvado para o ponto. Às vezes parecia que vinha algum som de lá de trás. Que seria aquilo? Filme pornô? Era comprido para a direita e, para a esquerda, dobrava a esquina. Aquele ponto de ônibus deveria ser uma piada de mau gosto. "Quando é que um ônibus vai passar aqui?" Finalmente alguma luz. Faróis. "É um ônibus, é um ônibus!" Não era. Um caminhão velho de feira. Será que queria ser visto por aquele motorista? Felizmente o ponto o cobriu da vista daquele motorista perigoso que, na verdade, era um pobre senhor com sua pobre senhora, duas criancinhas pobres e um monte de crucifixos presos ao espelho retrovisor junto com mais uns dez santinhos.

Não sabia nenhuma prece, mas sabia rezar. Que barulhos eram aqueles que vinham de trás do muro? Seria um açougue? Aquela árvore se mexera e isso não era uma pergunta. Direita: longa rua por onde viera. Esquerda: quem sabe? Não sabia e não iria tentar descobrir. Mais um farol meio xoxo. "Valeu, Deus!" Lá vem um ônibus. Diz um palavrão e dá sinal.

Realmente é um ônibus. Não dá pra ler o destino de tão escuro e sujo, mas quem quer saber o destino? Qualquer lugar é melhor que ali. Que bairro seria aquele? O ônibus é daqueles brancos, genéricos. Não dá pra ver a cara nem do cobrador e nem do motorista. Só a silhueta e as mãos. O motorista parece ter vindo ao mundo com a ajuda de um fórceps. O cobrador tem o maior queixo já visto. "Deve ser pra compensar o que falta no motorista...", pensa, já com a cabeça mais leve e um humor positivista idiota.

Muito tempo depois o ônibus não chegara a lugar nenhum. Muitas vezes havia passado por perto de luzes e movimento, mas nenhum local conhecido ou seguro. Pelo menos a seu ver. Agora já faz meia hora que está tudo escuro e o cenário não parece melhorar. Perdido novamente. "Não é nada, vá! O que pode ter de tão ruim em perguntar?" Levanta-se. No caminho entre o seu banco e o cobrador ele reconhece que vem agindo feito um bobo assustado e conclui que não deve beber nunca mais. Imagine pensar que aquela mulher estava querendo algo com ele. Ficar com medo de um muro!

Dirige-se ao cobrador e sua silhueta nem parece mais tão assustadora. "Oi, eu acho que peguei o ônibus errado, o senhor poderia me informar o nome que esse ônibus tem quando volta?" Um pouco antes de liberar tudo o que havia bebido durante o dia nas calças - e talvez até o que comera -, ele ouviu uma voz sibilante vinda daquele queixo enorme: "Essssse ssssó vai, moçççço...”

JOGOS

Mês de janeiro, naquele período da primeira quinzena, muitas pessoas de férias. Verão. Calor, chuva. Assim como casas do campo tem a tendência de serem ‘rústicas’, casas de praia tendem a serem coloridas. Essa não era uma exceção. Existem diversas formas de jogar poker, e esses jovens bonitos, saudáveis, com dinheiros suficientes para ter aquela bela e colorida casa de praia estavam jogando uma versão que não envolvia dinheiro, mas sim, bebidas. A bebida boa já tinha acabado e eles estavam entrando no terreno da água ardente. O poker ali deve ser jogado valendo pequenos copinhos de destilados pra quem perder. Para vencer geralmente é necessária tática, capacidade estratégica e alguma resistência a álcool. Isso se vencer, nesse caso, seja ganhar o jogo. Os jogadores têm como objetivo fazer a melhor mão. Deixa de beber o jogador que, no fim, fizer a melhor mão ou fizer com que seus adversários desistam de levar as apostas. As apostas acabam caindo pra peças de roupa ou beijos ou o que mais as jovens mentes conseguissem concatenar a essa altura. O poker tem uma estrutura básica, os jogadores ‘depositam’ suas promessas de apostas na mesa, as cartas são dadas para cada jogador. Algumas cartas são ocultadas dos outros jogadores, assim como, acham eles, estão ocultas suas intenções. O jogo vai se desenvolvendo e no fim, vence e leva todas as ‘fichas’ quem tiver a melhor combinação de cinco cartas ou quem for o último jogador que não desistir da mão. Isso tudo eu vejo por uma das enormes janelas da casa colorida. Alguns jogam poker, outros balançam na rede ouvindo a chuva cair. Eu observo encolhido no jardim, só de calças, esses jovens se divertindo. É engraçado pensar que eu já tive essa idade. Apesar de sermos da mesma geração, nossos interesses são tão diversos. Eles apostam peças de roupas num jogo que nessa idade eles podem considerar como sendo sedutor, ou até mesmo um pretexto para conseguir algo que sem o jogo ou o álcool alguns ali nunca conseguiriam. Isso nessa idade, onde o agora é tão urgente e ao mesmo tempo não importa nem um pouco, afinal, esses seres só pensam no que vão fazer depois, depois, depois. Estive de barriga pra baixo nesse jardim, na chuva por tanto tempo que sinto meus ombros doendo e os pedacinhos de madeira e pedras já estão incrustados na minha pele da barriga e do peito. Eu era parte desse cenário e é por isso que eles não me notaram, estive ali por horas. Mas, acho que já adiei por bastante tempo. É hora de me divertir também. Se eu me movesse rápido, daria na vista e eles entrariam em pânico muito cedo, estragando minha jogada, como um péssimo jogador de poker. Então, aproveitei o estado de excitação, o álcool e a total alegria das férias deles e fui me movendo lentamente pra trás. O processo durou por volta de meia hora. Eu me aproximo da porta da frente, todo molhado, com gravetinhos na barriga, dor no ombro, só de calça. Toco a campainha. Toco mais duas ou três vezes até notarem que tem alguém a porta e abaixassem o volume da música. “Tem alguém na porta!” ouço um gritar. A porta se abre subitamente e um jovem de corte de cabelo inexistente me encara surpreso, ao fundo temos mais um ou dois olhando e o resto fazendo o que quer que fosse. Eram dez no total. “Eu quero jogar” eu disse. O menino que era o dono da casa sorri e arqueja a sobrancelha. Nessa hora eu pensei bem e resolvi que o espírito jovem havia me contagiado. Cansei de jogar tão seriamente o meu jogo. Queria me divertir como eles se divertiam jogando aquele poker errado. Uma coisa que se deve observar nos jovens é que o importante em jogar é se divertir. E é isso que eu queria naquela hora. Não sou muito bom em descrever muitas ações ao mesmo tempo, mas sei que foi um corre-corre. Entrar, bloquear as saídas e agarrar qualquer objeto que pudesse machucar foi fácil, afinal de contas eu fiquei horas olhando pra dentro da casa colorida, eles mesmos me mostraram tudo a medida que iam se movendo pela casa enquanto eu os observava. Como disse foi um corre-corre. As meninas gritam bastante como sempre, mas o que é uma menina delicada comparado a mim. E divertido porque elas são tão bonitas. Os meninos se dividem entre heróis e covardes. Os heróis são fáceis porque eles se expõem mais, já os covardes fazem o jogo ficar mais chato, pois eu tenho que agachar forçar portas e tudo mais que não acho que tenha mais tanta paciência. Mas no final só tenho a dizer que foi uma festa. De certa forma foi meu recorde de tempo e de ferramentas. Usei apenas uma. Fiquei feliz que não precisei apelas para a obviedade de facas ou fios de pescas tão comuns em casas de praia. Usei um bom e velho pau de pilão. Isso mesmo! Um pilão! Essa casa tinha um pilão gigante de madeira, provavelmente usado como decoração. É impressionante a resistência daquela madeira. Uma das meninas eu admito que trapaceei e empurrei da escada, mas, coitadinha, ela estava zonza com a pancada. Mas assim como no jogo de poker deles, o meu jogo estava aberto a mudanças de regra ao meu bel prazer, afinal de contas... Eu sou jovem também!

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

HOTEL

O carro novinho que ganhara de aniversário parecia não melhorar em nada a forma com que Eduardo Filho dirigia naquela estrada mal iluminada e encharcada.
"O problema está certamente entre o banco e a direção!", diria seu pai. "É por isso que lhe dei um carro popular!" Velho muquirana! E para piorar sua total inabilidade, a chuva caía cruelmente do lado de fora do carrinho mil.
O engraçado é que sempre se sentira tão seguro dentro de um carro, e hoje, isso! Sentia que a porta ia cair, o vidro escorregaria para dentro e ele estaria ali, exposto a toda a chuva que Deus permite cair do céu. Mas e daí? Seria apenas água. Tinha algo mais incomodando Eduardinho. Seria a noite? Seria o fato de a estrada estar totalmente escorregadia? Seria por estar dirigindo fora da cidade dois dias depois de ter tirado a maldita habilitação? Seria o jantar em família que o aguardava? "Aquele monte de caipiras perguntando da minha vida!" Seria aquela árvore com formato de gente carbonizada? Opa! Dudu já vira aquela árvore alguma vez antes, na verdade já vira aquela árvore umas três vezes antes! Sim, era isso que o deixava nervoso naquela noite: estava perdido, rodando em círculos.
O que fazer agora? O celular! É só ligar para o Sr. Eduardo e tudo ficará resolvido! Ele vai certamente reclamar por ser interrompido, reclamar que o mapa não é pra ficar no sofá da sala, mas... E daí? O celular! Seu coração já mais tranqüilo lhe permite até se recostar no banco. Mas é difícil dirigir e falar ao celular ao mesmo tempo! Se bem que estacionar aqui é loucura! Diminuiu a velocidade. Pronto, em breve estará em contato com seu chato, porém prestativo pai. Nada como ser um filhinho de papai.
Até que não é tão difícil dirigir dessa forma. Mas cadê o sinal? E o que aquele tronco faz no meio da estrada? Tarde demais. Desviar o salvou de destruir totalmente o carro. Mas aquele barulho de lata batendo o pai iria notar no exato momento que entrasse pela porteira da fazenda. Lá estava nosso Eduzinho abraçado na direção outra vez, quase chorando, quando, do nada, sua sorte parece mudar.
Uma placa! Uma placa indicando uma cidade! Quem se importa se o nome da cidade nos lembra algo desolado ou perdido? Não há cidade com um nome desses. Poderia ser outro nome e a chuva atrapalhou a leitura. Mas é uma cidade e lá tem que ter um hotel. Um aconchegante, seco, seguro hotel de interior, com um monte de caipiras, um monte de caipiras iguais à sua família. Um aconchegante hotel familiar. Com telefone.
O assustado filho de Sr. Eduardo entra onde a placa indica. Não demorou muito, uns dez minutos, para chegar à cidadezinha. Como era de se esperar, composta por uma pracinha bem cuidada, uma igrejinha reformada há pouco tempo, o coreto com flores ao redor, uma farmácia já fechada, "típica cidade do interior" e um hotel. Um hotelzinho, mas ainda assim, um hotel. Ao encostar o carro na porta do "Grande Hotel", notou que os dois pneus do lado esquerdo estavam sobre a calçada. Realmente seu saudoso pai estava certo, o problema era entre a direção e o banco. A chuva não melhorara nada. Mas em breve alguém do hotel viria buscá-lo com aqueles enormes e acolhedores guarda-chuvas. Em breve. Talvez não nesse hotel. Como se não bastasse a maldita viagem, ter se perdido, estragar um carro com dois dias de uso, agora terá que tomar um banho até entrar no hotel. "Que se danem as malas!" Hoje Duzinho irá dormir pelado enrolado no maior número de cobertas possível.
Ao entrar totalmente molhado naquele ambiente mal iluminado, ele pôde ver uma tevê não muito nova cercada por poltronas de courinho. Assistindo à tevê, sentada no chão em posição de lótus, uma angelical garotinha de mais ou menos dez anos. Numa mesa um pouco mais atrás, perto da escada, encarando de forma débil um tabuleiro de xadrez daqueles pintados na mesa, havia um rapaz da mesma idade que ele. Um rapaz obviamente retardado. Sim, ele tinha algum problema mental. No balcão, lendo jornal, estava um velho, fumando de forma pomposa. "Meu Deus do céu...", pensou, “onde foi que vim parar?” Será que ninguém podia ajudá-lo? Ele era um cliente!
Ao se aproximar, furioso, cansado e encharcado, Eduardinho bate o pé numa elevação. A topada foi a última gota d'água, literalmente. “Merda de cidade, merda de hotel! Por que é que vocês não vão todos pro inferno?" O retardado sorriu babando, o velho olhou com o canto dos olhos, a menininha angelical nem se mexeu, e essa foi toda a manifestação que aquelas pessoas tiveram. Ao pedir um quarto: "Não!", o velho lhe disse com uma voz que parecia mais a de uma múmia, provavelmente resultado do cigarro. Sem entender, o jovem pergunta novamente, e novamente ouve "Não!". "Como assim?" "Não é não. Vai embora!", disse o velho sem tirar os olhos do jornal.
A essa altura nada mais fazia sentido para Edu. Tudo era muito bizarro. Como assim, não querer um cliente? Eduardo tentou argumentar, mas aquele velho seboso não arredava os olhos do jornal. "Não aceitamos pessoas que diminuem nossa cidade ou qualquer coisa dela!" As palavras trocadas em seguida não ajudaram em nada, mas pelo menos o velhote tirou os olhos da leitura e até se levantou para discutir. O demente começou a esmurrar a mesa e a garotinha virou a cabeça na direção da discussão. Falavam mais ou menos sobre ter orgulho da cidade e que, se quisesse dormir, que procurasse outro lugar. Nervosíssimo, o jovem perdido deixa o hotel xingando Deus e o diabo por nomes pouco religiosos e batendo a porta de vidro.
A chuva ainda caía pesada. Mas para que outro lugar poderia ele ir? “Merda de cidade! Merda de hotel! Por que é que eles não vão todos pro inferno?", gritou no meio da rua. Bem, alguém ouviu isso. A garotinha e o rapaz retardado saem atrás dele usando um bom e acolhedor guarda-chuva de hotel. A garota era o ser mais puro que já pisou na face da Terra. Talvez por isso também fosse estranha. Contrastava com o resto das pessoas que ele vira até então. Ela chegou juntamente com o rapaz da síndrome e, a um metro de distância, disse: "Moço, se o senhor quiser, tem uma pensão logo atrás deste hotel, descendo essa rua e dobrando a esquina..." Dizendo isso, a garotinha sorriu e puxou o retardado: "Diz tchau pra ele, maninho!" A dupla dá adeus com as mãos e sai tranqüilamente de volta ao hotel. Eduardo agradece em voz alta, sem demonstrar a total gratidão interna - agora meio arrependido, com dó dos dois.
Direciona-se à pensão. No caminho escorrega nos paralelepípedos e cai. Obviamente esse não era o seu dia. Chegando lá - só poderia ser ali -, vê a humilde porta do que antigamente fora apenas uma casa. Entra e olha ao redor. Não há ninguém. "Alguém aí?" Espera por mais alguns instantes entre a total desesperança e a falta de opinião completa. Uma senhora vem apressada, saindo por detrás da cortina de bambus que separava aquela salinha do resto da pensão. Uma senhora horrorosa vem fumando e se arrumando - talvez tivesse acabado de usar o banheiro. Gentil, mas ainda assim horrorosa. Onde ele já tinha visto aquele rosto antes? Quem se importa? A noite já tinha passado dos limites, tudo dera errado e ainda discutira com um velho que estava com os dois pés na cova.
Os dois se entenderam bem. A velha tinha uma voz muito esganiçada. Gentil, mas ainda assim esganiçada demais. Ele explicou como fora parar ali, quem o indicara - pulou a parte em que falou uma enorme seqüência de palavrões para um velho de mais ou menos cem anos, mas o resto estava tudo ali. A velha pareceu meio indiferente às suas explicações, mas até agora ela fora a pessoa menos estranha da cidade - a não ser pelo seu DNA. Ela lhe ofereceu o que disse ser o melhor quarto. Na verdade ele não lembrava de ter visto mais nenhum. Tudo muito aconchegante, bem do interior. Comeu um belo jantar e foi deitar. "Acho que amanhã cedo vou lá ao hotel pedir desculpas, depois perguntar o quanto devo a essa boa velha!", pensou, antes de deitar-se e dormir o sono dos exaustos... E de ter pesadelos muito estanhos nos quais o velho seboso se transformava na boa velha, e a velha carregava uma caixa de ferramentas, o que acabava salientando as varizes de sua perna. As varizes e os pêlos. Tudo muito horrível. “Deve ter sido a gordura!” Comida do interior. Gente simples que ainda não descobriu os males que isso faz.
No meio da noite começou a ouvir um som contínuo e cadenciado, algo como marteladas. Mas estava muito escuro e não conseguia ver nada pela janela. Sentiu uma leve dor de estômago: "Definitivamente, foi a gordura!"
Ao acordar notou que ainda estava tudo escuro. A porta estava trancada, a janela estava trancada. Eduardo Filho tentou abrir, tentou achar uma saída, gritou, bateu, tentou usar o celular, mas estava sem conexão, seu estômago doía cada vez mais... Era fome. Há quantas horas estava ali? E lá de fora ainda ouviu uma voz fininha de criança falando com alguém: "É, é o homem daquela noite!" Alguma voz, com dificuldade, grunhiu alguma coisa. "O Vovô não gosta de gente que desmerece nossa cidade!" Novamente um grunhido débil. "Não importa se foi na semana passada ou não!" Novamente a voz torta. "Shhh! Ouviu isso? Ele está chegando! Vem, vem!" Outra pessoa chega com uma voz rouca - voz de múmia, provavelmente alterada pelo cigarro: "Queridinha, você viu a anágua do vovô?" O rapaz, totalmente desesperado, mas fraco pela fome, só tem um pensamento na cabeça: “Merda de cidade, merda de hotel! Por que é que vocês não vão pro inferno?"

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

GRAVATA

É isso que acontece quando um casamento chega ao fim. É isso que acontece com uma família despedaçada. Tudo começou bem, eu fazia faculdade, ela também. Conhecemos-nos, nos apaixonamos e, por fim, nos casamos. No começo passamos um pouco de dificuldade, mas tudo se acertou depois. Era sempre assim. Um pouco de dificuldade no princípio para depois tudo se acertar. Na minha vida isso sempre aconteceu. Minha mãe biológica era péssima e me batia muito quando era pequeno. Minha vida era um inferno. Até que um dia nosso vizinho descobriu e contou tudo à polícia. Fui adotado e minha mãe foi pra cadeia, ou pelo menos foi o que me contaram a vida toda. Nunca conheci meu pai. À medida do possível aconteceu o melhor. Era sempre assim, ou quase sempre. O mesmo aconteceu quando minha esposa e eu resolvemos que a família iria crescer. Ela não engravidava de forma alguma, tentamos muitas e muitas vezes. Fizemos testes e mais testes, fizemos tudo. E mais uma vez no final deu tudo certo. Nosso filho nasceu pesando 3200g, saudável e tudo parecia muito bem. Com o tempo ele foi crescendo e ficando um meninão lindo. Minha esposa e eu estávamos orgulhosos. A notícia chegou numa sexta-feira. Após ele reclamar de dores de cabeça, levamos o menino para fazer alguns exames e esperávamos o resultado ansiosamente. Ele chegou. Câncer dentro daquela cabecinha inocente. Câncer. Câncer que não dá pra curar. Perde-se muito tempo e energia tendo esperança pra não conseguir. Esse era um caso sem esperança, podia-se ler isso nos olhos dos médicos. Ele não tinha chance. Nosso pequeno filho, o filho que esperei a vida toda para poder educar, para poder dar o que não tive por completo. Minha esposa começou a se entristecer a tal ponto que adoeceu. Veja a minha situação, eu, um pai esforçado, que passou por todas as dificuldades que um ser humano poderia passar. Meu filho com câncer no cérebro e nenhuma esperança de cura. E minha mulher entrando em depressão. Tudo na vida tem um limite. É difícil começar tudo de novo sempre. No final dá certo. Mas começar tudo de novo me parece difícil demais. Não quero e não agüento mais começar do zero. Foi muito difícil chegar até aqui. E depois ainda temos todos os problemas psicológicos. Os meus problemas e traumas eu conheço bem, mas assim que essa criança morresse, esse pedaço nosso morresse, teria que lidar com os meus problemas e com os problemas dela. Minha querida, porém frágil, esposa. Não sei se conseguiria recomeçar com todo esse peso. Eu sou peso demais pra mim mesmo. E eles não me permitiriam um novo começo. Mas agora está tudo se acertando. São 07:30 da manhã, já tomei café da manhã, minha esposa não vive mais aqui e o menino já foi se encontrar com nosso criador. Acabo de despedir-me deles. Ainda me doem as costas, ainda não consigo tirar a terra das unhas, as ferramentas ainda estão de molho para saírem as manchas. Tudo passa tudo se resolve menos nossas dificuldades mais sérias. E uma delas é uma família despedaçada e um nó de gravata que eu nunca aprendi a fazer sozinho. Mas tudo começa difícil e no final... No final eu acerto.

DUAS E TRINTA E OITO

Gosto de contar histórias. Minhas histórias não fazem sentido, não são verdadeiras, e muitas vezes não tenho idéia do que possivelmente possam significar. Um misto de catarrada com espiritismo. Não no sentido de pus e saliva misturados com doutrinas religiosas, claro.

David Lynch escreveu num livro que a criatividade é como um peixe e, curiosamente, apesar de a afirmação vir de quem veio, acho que fez tanto sentido...

Num dia desses, apaixonei-me pela idéia de que se o mundo fosse enfeitiçado pelo período de mil anos com uma magia que fizesse todos os seres humanos cumprirem instintivamente as leis vigentes do território onde estão no momento, existiria uma grande possibilidade de que, após o final do feitiço, o mundo permanecesse em paz e ordem por mais mil anos, fazendo assim com que muitas leis caíssem por terra num mundo civilizado e transbordante de bom senso. Já ouvi tantas vezes, de tantas pessoas diferentes, que tudo de que o mundo precisa é amor quando, na verdade, acredito, do fundo do coração, que tudo de que o mundo precisa são método e procedimento. Isso e criatividade.

Toda vez que despenco num abismo, penso que contar de forma progressiva cria muito mais ansiedade e falta de esperança do que a contagem regressiva. E ao assistir a filmes sobre adolescentes penso se algum dia eu conseguirei terminar Crime e Castigo.

Você já parou para pensar que Deus parou de criar coisas boas? Por exemplo: nunca, desde que nasci, ouvi esta notícia no rádio: “Descoberta uma fruta nova que pode ser usada, entre outras coisas, para curar a AIDS”. Ou ainda: “É sabido que uma nova substância na tabela periódica apareceu recentemente, e com ela não existirão mais crianças com hidrocefalia”.

No entanto, acredito que Deus fique lá na casa dele criando coisas horríveis, como a própria AIDS, que brotou no planeta no começo da década de 80 e não vem de nenhum dos reinos e não provém do consumo exagerado de nenhuma substância ou exposição exagerada a nada ou sei lá o quê.

É o que eu digo: acreditar em Deus é mais deprimente do que acreditar num grande, solitário e vazio sem amor nada.

Basicamente.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

DEVANEIO

Seu amigo acabara de estacionar em frente à casa. Viera deixá-lo após uma festa. Devia ser umas três horas da manhã, estava cansado, não muito. Despediu-se e, agradecendo pela carona, bateu a porta do carro, já pensando no que há pouco acabara, já o passado, para se arrepender, terminado o calor da comemoração. Aliás... Os pensamentos do que poderia ter feito já o haviam alcançado, pois no longo caminho de volta, o silêncio produzido pelo sono e a maldita melancolia pelo “final da festa” agiram como um atalho para tal sentimento.
Ouvia o carro virando a esquina e a fechadura do portão se trancando simultaneamente com o movimento de sua mão.
Aqueles olhos. Logo ali na esquina de sua casa. Lá estavam aqueles olhos luminosos como um flash em fotos amadoras. Novamente eles olhavam e rapidamente piscavam. Novamente. Gente não era.
Atravessou o pequeno quintal, do muro da entrada até a porta da sala. Outra olhadela pra esquina. Os olhinhos lá. Toda noite agora a mesma coisa. Seria um cachorro? Muito grande pra um gato.
Fizeram-se mecanicamente os movimentos - abrir, fechar, trancar, pendurar as chaves, tencionar os ombros, relaxar tudo. Bocejo seguido de um resmungo falho para lembrar, após tanto falar inconsciente, de que era mesmo ele que acabara de conversar, comer, olhar e beber numa festa de pessoas que nem sabia bem se conhecia. Olha pela janela antes de fechar a cortininha. Os olhos brilhantes sumiram.
Meio decepcionado com tudo, olhou para o chão com o habitual corpo apoiado em uma perna, mãos na cintura e postura caída, vontade de esquecer tudo e dormir bem.
Mas esquecer o quê? Ele não fez nada! Ninguém fez nada pra ele! Esse é o problema - ninguém fez nada, não aconteceu nada, foi a mesma coisa de sempre. As pessoas, os assuntos... Talvez algumas músicas fossem inéditas. Até as roupas eram uma variação de muitos anos atrás! Para dizer a verdade, agora que percebera, esta era uma comemoração anual, e já faz duas ou três comemorações de igual motivo que ele saiu do mesmo lugar, chegou no mesmo lugar e que nos mesmos lugar e pose pensa o mesmo. Exceto pelos olhos de flash.
Levou as mãos à face para se certificar de que era isso mesmo. Depois olhou para a porta de seu quarto - que se pode ver da sala quando se passa pelo corredor que leva à cozinha, cuja porta está sempre aberta.
Após mais um precário relaxamento dos ombros, caminhou para lá, passando a mão na nuca, já se esquecendo dos pensamentos inconformáveis de há pouco e já se lembrando de, na próxima vez, não usar mais aqueles sapatos. Acabaram com seus dedos.
Antes de entrar no quarto, porém, teve a derradeira sensação de ver olhinhos na inocente penumbra de sua cozinha.

domingo, 2 de janeiro de 2011

CONVERSA

Para todos os lados havia branco. Igual a um deserto de sal, mas lembrava mais o THX 1138. Batia um ventinho, e se tivesse um céu ali, seria azul. Azul feito uma colagem tosca no Paint.

Estava sentado numa cadeira de madeira velha e barata, mas algo me dizia que na loja ela custaria uma pequena fortuna.

Dentro da minha cabeça eu refletia sobre a carta de Nick Cave à MTV pedindo para nunca mais indicá-lo a prêmio algum. Nessa carta ele dizia mais ou menos que sempre fora da opinião de que sua arte era única e individual, e existia para além dos reinos habitados por aqueles que queriam reduzir as coisas a simples medições. Eu adorava quando ele dizia “Não estou em competição com ninguém” e “Meu relacionamento com minha ‘musa’ é delicado, e sinto que é meu dever protegê-la de influências que podem ofender sua natureza frágil”. Era uma carta extremamente educada, e eu concordava com tudo e concordava e concordava.

Outra cadeira do meu lado (de diferente formato). Ele era esbelto, alto – de uma estatura invejável – e tinha a reputação de ser muito bonito num certo ângulo e sob certa luz. Sentou-se e cruzou as pernas.

- Está tudo bem comigo. Tenho aquilo de que preciso e do que não tenho não preciso ou estou a caminho de conseguir. Mas tem essa coisinha que me incomoda.

Um cisco entrou no meu olho, mas fiz sinal para ele prosseguir.

- Sabe... Eu não luto pela donzela amada.

Encarei-o piscando com um olho só... De onde teria vindo o cisco?

- Sabe... Lutar por alguém me parece estranho... Se a pessoa quisesse, estaria comigo, e tem outra: mesmo que quisesse... Como diabos eu faria isso?

Acho que este lugar é mesmo um deserto, não de sal, mas deve ser um grão de areia.

- Não me vejo como um cavaleiro que luta pela donzela... Sou um homem de negócios.

Dizendo isso, levantamo-nos e fomos procurar uma barraquinha de água de coco. Parecia que estávamos nos desidratando ali.

sábado, 1 de janeiro de 2011

COMO CONHECI MINHA AMIGA MIRNA

É uma longa história. Certa vez, caminhando pelos "Jardins Que Sempre Caem Para Cima", deparei-me com um exército infinito de Mirnas. Todas elas usavam roupas com um número primo pintado na frente. Então fui conversando com todas. O problema é que o poder dela de ser várias dura pouco. Uma ou duas perguntas e o clone some. Quando finalmente cheguei à original ela me disse que estava multiplicada, pois tinha que ir ao banco (e você sabe como são as filas nessa época do ano). De lá para cá nos tornamos bons amigos e ela até ilustrou uma das músicas do meu segundo cd. Está no encarte, confira. Manda um beijo para ela e um para você!

CABANA

Esta é a história de uma cabana. No meio do mundo, rodeada por nada. Escuridão tremenda. Nada se sabe. Quem dentro da cabana vive são três aberrações. E elas brigam sempre. Bem, elas estão sempre brigando. Brigando feio.

A aparência de muitos anos. A verdade era relativa. Ele realmente era velho, mas nem tanto. Muitos pesos, muitas medidas. O mais velho, aleijado e míope, tinha a idade sobre as costas, a testa franzida, os ombros caídos. Vivia de branco, impecável, falava correto, corrigia os outros, era implicante, adorava a ordem e os discursos. A verdade nem importava. Escondia a idade e aparentava a idade que lhe dessem.

O do meio, descontrolado, escandaloso. Sempre vestindo vermelho... Até seu nariz era vermelho. Um vulcão às vezes, uma calmaria, outras. Vivia em isolamento com seus irmãos, mas se tivesse contato com o mundo exterior ficaria na dúvida quanto à sua sexualidade.

O caçula, apesar de sentir dores terríveis, é um escravo do mais velho e só apanha do segundo. Entre os três, é o mais sociável, o que mantém os três juntos desde o berço. Não tem medo de nada (tirando de seus irmãos). Forte como um touro, faminto, e tem o cérebro do tamanho de um gergelim.

Esses sãos os trigêmeos.

No fundo estão sempre prejudicando um ao outro. Eles brigam o dia inteiro, mas um não vive sem o outro, mesmo porque estão presos por gigantescas correntes que alguém misteriosamente fez. Dizem que a probabilidade de isso acontecer é a mesma que a de um jogador de golfe acertar a bolinha num buraco na lua ou a de uma fita cassete sair da fábrica, sem querer, com a 9a Sinfonia do Beethoven gravada.
A cabana é grande e cheia de cômodos, todos muito vazios, mal iluminados, muito sujos e sem nenhuma decoração ou móveis. A não ser, é claro, a sala onde se encontram todos os pertences dos três e eles próprios. Nesse local, no entanto, existem tantas coisas e eles são tão mesquinhos, que estão sempre brigando para saber onde fica o quê de cada um. Bem, eles estão sempre brigando. Brigando feio.
O trio tem sempre uma resposta para tudo. Eles têm a solução para o amor incondicional, a existência de Deus, a fome no mundo, a meta da humanidade, a paz universal, a pergunta shakespeareana (“ser ou...”) e até para quem veio primeiro (o ovo ou...). O mais velho já escreveu um livro técnico sobre cada. O segundo já escreveu dúzias de poesias cheias de dor e paixão e o terceiro não sabe escrever, então fez um livro de desenhos, mas desistiu, por fome, e comeu todos os lápis de cera. Então eles brigaram. Bem, eles estão sempre brigando. Brigando feio.
Eles discordam tanto que, mesmo olhando, como por exemplo, através de uma mesma janela, poderia sair discussão sobre o que viam. Mesmo que pela janela só se pudesse ver uma única e solitária árvore. Eles estão sempre brigando. Brigando feio.
Eles estão sempre brigando. Brigando feio.