segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

SENTIMENTO

Após o incidente, tudo mudara. E era preciso expandir o que sentia. Uma válvula de escape de um lugar desconhecido.
Quando criança, era especial. Do berço até os sete anos de idade não pronunciou uma única palavra. Nem um gugu, nem um dadá. Preocupou muito seus pais que, por mais esforçados que fossem, continuavam sendo humanos. Era como um anjinho, com seus grandes olhos negros. Antena parabólica. Esponja.
Dos oito aos catorze as coisas mudaram. Com a fala veio também a revolta e os sintomas mais óbvios, apesar de não notados, de seu poder. Certa vez seus pais estavam brigando há semanas, sem parar. Com um murro na mesa fez a casa estremecer e todos no mundo se calaram por um minuto. Apesar da energia do ato, a mesa continuou intacta. As brigas entre os pais agora eram direcionadas à própria cria.
Dos quinze aos vinte e um, um tipo de desdém tomou conta, junto a um sentimento de marginalidade. Após juntar muitas coisas não ditas e não feitas, em uma festa chique, de vários talheres e copos, brotou-lhe um grito da garganta com tamanha violência que todos os vidros do local se quebraram, a luz acabou e por semanas todos os presentes - sem ligar o ato ao efeito ou à pessoa - sentiram um enorme vazio no peito, e um silêncio desalentador pairou.
Agora, já com a idade mais avançada, talvez chegando nos vinte e oito, nessa situação difícil de recuperação, notou que o que realmente importava era esse novo sentimento que forçadamente descobrira, um sentimento nostálgico ao contrário, algo de uma pré-infância.
Anterior a isso.
No trabalho, abriu suas mãos em direção aos colegas e eles, olhando com atenção, sentiram-se compreendidos de forma aconchegante.
No trânsito, saiu do carro, ergueu os braços aos céus e assim todos pararam de buzinar, desabotoaram-se e, olhando-se entre si, levantaram as sobrancelhas, querendo achar mais paciência.
Ao chegar em casa, abraçou seus familiares de uma forma que todos entenderam o que se passava e retribuíram ao mundo. Assim, como os colegas de trabalho e as pessoas no trânsito, sentiram toda a paz, silêncio, boa vontade e necessidade de se espreguiçar.
Dirigiu-se ao banheiro, olhou-se no espelho, piscou para si os enormes olhos negros, agora mais negros ainda, e virou luz.

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